Por João Arruda | Cáceres
A lua era quarto crescente na tórrida cidade de Cáceres (a 210 km de Cuiabá). A temperatura da tarde de mormaço beirou os 45 graus Celsius. Na Rua Santo Antônio, no Bairro Cavalhada, o calor fervilhou por outro motivo: o patriarca da família Caxito, o veterano da Marinha do Brasil, José Francisco Caxito, comemorava seus longevos 108 anos com lucidez e saúde.
Para celebrar o centésimo oitavo ano de vida, a família Caxito reuniu todos os seis filhos: duas senhoras (Rafaela Braga e Estelita Amaral) e quatro homens, conhecidos em Cáceres como os “Irmãos Caxito” (Wilson, Joaquim, José e João Irani). Dois deles viajaram de Araribóia, em Niterói (RJ), até a “Princesinha do Paraguai” (Cáceres), para juntos brindarem o aniversário do chefe do clã, o servidor aposentado da Marinha, José Francisco Caxito. Ele, por mais de três décadas, prestou relevantes serviços à então Capitania dos Portos de Mato Grosso, atual Agência Fluvial de Cáceres.
A trajetória de Caxito, contudo, tem suas origens no norte de Minas Gerais, na cidade de São Romão, quase na divisa com a Bahia. Ainda jovem, ele partiu de lá para São Paulo e, posteriormente, para o Rio de Janeiro. A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que avançava de Bauru (SP), passando por Três Lagoas (MS) e Campo Grande (MS), até Corumbá (MS), foi o ambiente de trabalho onde ele foi contratado pelo extinto Ministério de Viação e Obras Públicas. Sua função era atuar na ligação ferroviária entre Corumbá e Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia.
Em terras bolivianas, ele conheceu a companheira com quem se casou. Após o encerramento do trecho da ferrovia que interligava Brasil e Bolívia, José Francisco Caxito foi designado para prestar serviços à Marinha do Brasil em Cáceres, onde permaneceu até os dias atuais.
O ingresso dele na Armada Brasileira serviu de estímulo aos quatro filhos. Três seguiram a carreira militar, enquanto apenas um, em meio à jornada, optou pela vida civil, ao lado dos pais e das duas irmãs.
O aniversário reuniu todos os filhos, netos, bisnetos e tataranetos. Dezenas de amigos também compareceram, entre eles o desportista Vicente Ortiz, um velho camarada da família Caxito. A festança varou a madrugada, embalada por uma garoa mansa, porém teimosa, e pelo som do legítimo rasqueado cuiabano, que animou a folia e o aniversariante.
REENCONTRO
Desde o longínquo ano de 1983, dois pantaneiros de Cáceres não se reencontravam. De um lado, à época, o aluno marinheiro João Arruda, aos 18 anos, e do outro, João Irani Caxito, na ocasião, marinheiro engajado. O mesmo destino que os uniu também os separou: João Arruda regressou a Cáceres, enquanto Irani singrava mares, percorrendo o país e o mundo. O festivo reencontro, após 42 anos, ocorreu exatamente na data especial do “Velha Guarda” José Francisco. Daí a prosa e as trovas fluíram, embaladas por um autêntico churrasco pantaneiro, regado a cervejas, até o sol, com suas rajas cor de romã, despertar a cidade, surgindo por trás da encantadora Serra das Araras.
TREM DO PANTANAL
A linha férrea que corta o Brasil em uma transversal, desde o estado do Rio de Janeiro, cruzando São Paulo de leste a oeste, recebeu o nome de Noroeste do Brasil. Com uma extensão de 1.622 quilômetros, foi projetada no período imperial para interligar o país.
A ferrovia, fruto da engenharia inglesa, consumiu mais de uma década para ser totalmente concluída. Os operários que assentaram os dormentes eram uma verdadeira Torre de Babel em pleno Pantanal: estrangeiros de origens belgas (a maioria), franceses, ingleses, alemães, espanhóis e italianos. Além deles, bolivianos e paraguaios juntaram-se aos brasileiros na longa jornada.
A estrada também foi apelidada de “Trem da Morte”. Durante um período, criminosos se passavam por passageiros para cometer seus crimes ao longo do percurso. Duas pontes monumentais, entre outras, destacam-se ao longo da ferrovia: a do Rio Paraná (entre SP/MS) e a do Porto Esperança, sobre o Rio Paraguai, no município sul-mato-grossense de Miranda.
A estrada também era uma rota para imigrantes ilegais no Brasil renovarem seus passaportes via Santa Cruz de La Sierra. Ou seja, ao vencer o visto, eles seguiam, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, em uma longa viagem até Santa Cruz, onde carimbavam os passaportes e, em seguida, regressavam ao Brasil. Essa tática se repetia até que conseguissem o visto permanente ou se casassem no país com brasileiros ou brasileiras.
O cantor Almir Sater, na primeira estrofe de sua música, revela que “este é o melhor caminho para um fugitivo de guerra”.
Uma francesa residente em Cáceres fez uma revelação desconhecida sobre a mensagem que a música, sucesso em todo o país, transmite em sua canção. A francesa, hoje com dupla nacionalidade, conta que, no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o mundo entrou na chamada Guerra Fria. Ela, que havia perdido avós, tios e outros parentes, temendo uma nova guerra, viu como saída atravessar o Atlântico, vindo para o Brasil. E assim o fez, casando-se com um cacerense e fixando residência definitiva no Brasil. “Na França, só a passeio; me transformei numa brasileira do Pantanal”, brinca ela, mas preferiu não ter sua identidade revelada.





