Crédito, Vitor Serrano/BBCLegenda da foto, Cemitério funcionou por mais de um século em área onde hoje é uma casa de eventos de propriedade da Santa Casa de Misericórdia da BahiaArticle InformationAuthor, Marina Rossi e Vitor SerranoRole, Enviados da BBC News Brasil a SalvadorHá 27 minutos”Cemitério desaparecido a 250 metros”, diz um cartaz colado por ativistas na parede de uma rua no bairro Nazaré, em Salvador. O muro que recebeu o “aviso” no Dia de Finados do ano passado fica próximo ao Campo da Pólvora, uma importante praça da capital baiana. Naquelas intermediações, fica também a Pupileira, um complexo tombado de propriedade da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, que abriga um centro de memória, um concorrido cerimonial, a faculdade e a sede da administração da instituição.Foi por ali que funcionou por aproximadamente 150 anos o cemitério do Campo da Pólvora, o primeiro cemitério público de Salvador. O local era destino de excluídos da sociedade, principalmente pessoas escravizadas, africanos de diversas etnias e seus descendentes, mas também pobres, indigentes, indígenas, encarcerados, suicidas, insurgentes e condenados à morte. Essa história termina em maio de 1844, quando o cemitério foi desativado e substituído pelo do Campo Santo, a cerca de três quilômetros dali. Estima-se que ao menos 100 mil pessoas tenham sido enterradas no Campo da Pólvora. Dentre elas, personagens históricos, como lideranças da Revolta dos Búzios (1798 a 1799) pela independência da Bahia e fim da escravidão, e da Revolta dos Malês (1835), encabeçada por escravizados, principalmente de origem muçulmana, pela liberdade religiosa e o fim da escravidão.”Quiçá tenhamos ali o maior banco de DNA de pessoas escravizadas do mundo e isso nos traz um resgate também da nossa ancestralidade,” afirma Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia (MP-BA).Mas, após ser desativado, o cemitério do Campo da Pólvora “sofreu um apagamento histórico, desaparecendo tanto da paisagem como da memória da cidade”, afirma Silvana Olivieri, pesquisadora e doutoranda em Urbanismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA).Cento e oitenta anos após a desativação do cemitério, Olivieri, o professor da Faculdade de Direito Samuel Vida, e um grupo de arqueologistas decidiram exumar essa história. A busca pelo cemitério ‘desaparecido’O cemitério foi criado no século 18 pela Câmara Municipal, gestora do local ao longo de aproximadamente 50 anos. O nome — cemitério do Campo da Pólvora — era porque estava no entorno da Casa da Pólvora, que além de depósito de explosivos, servia também como fortificação militar, para a defesa da cidade.Por volta de 1740, a Santa Casa passou a administrar o cemitério, até sua desativação, em 1844.Em um vai e vem de compras e vendas, a instituição vendeu o terreno, mas o comprou novamente em 1862, junto a uma área maior, que, até hoje, pertence a ela: o Asilo dos Expostos, hoje denominado complexo da Pupileira.O nome atual faz referência aos “pupilos”, já que no local funcionou um internato, um orfanato e uma creche. O hospital da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, que ficava a aproximadamente um quilômetro do cemitério, também abrigou a primeira roda dos expostos do Brasil. Surgida na Europa, a roda era um dispositivo rotativo instalado em instituições de caridade para pessoas abandonarem anonimamente bebês.Quando a Santa Casa comprou o terreno de volta, em 1862, a escritura apontava para a existência prévia de um cemitério ali, o que não seria uma surpresa, dado que anos antes a própria instituição já o havia administrado.”Pela frente da rua do Campo da Pólvora tem vinte e seis braças e oito palmas, começando da quina do muro do antigo cemitério, e seguindo para o lado do quartel de Santo Antonio da Mouraria até preencher aquele espaço”, diz parte da escritura do século 19 à qual a BBC News Brasil teve acesso. No entanto, hoje não há placa ou menção alguma à história do cemitério no local, embora ele faça parte da história da cidade — e isso despertou a curiosidade da pesquisadora Silvana Olivieri.”Minha pergunta era onde estava esse cemitério e como ele desapareceu da cidade”, diz ela, que fez sua tese de doutorado sobre o tema.Crédito, Vitor Serrano/BBCLegenda da foto, Jeanne Dias e Luiz Pacheco fizeram parte da equipe das escavaçõesMas para Rosana Souza, coordenadora de Patrimônio e Memória Cultural da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, não houve “desaparecimento”. Ela afirma que, naquela época, não existia esse “dilema moral” em relação à escravidão. “Não existia, portanto, esse apagamento proposital, porque não existia nem esse valor moral de que isso precisava ser acobertado.”Já para os pesquisadores, o fato de o local nunca ter sido localizado era uma forma de apagamento da história.Por isso, munida de mapas e plantas de Salvador do século 18, Olivieri se debruçou sobre documentos históricos para tentar localizar o possível perímetro onde o cemitério funcionou.Segundo seus estudos, parte da história da cidade estava enterrada debaixo de alguns palmos de terra do estacionamento da Pupileira.Levantada a suspeita, em julho do ano passado, Olivieri e Samuel Vida encaminharam um dossiê ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) acompanhado de uma solicitação de apoio institucional para a realização de uma pesquisa arqueológica no local.O Iphan intermediou, ainda no ano passado, duas reuniões entre os pesquisadores e representantes da Santa Casa da Bahia, que, segundo Olivieri, não respondiam aos pedidos formais do Iphan para a realização do estudo no solo. “A Santa Casa se recusou a responder ao Iphan sobre a autorização das escavações durante três meses”, diz Olivieri. No fim do ano, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) foi procurado para intermediar as negociações.O MP-BA realizou mais duas reuniões entre pesquisadores e a Santa Casa, uma em 9 de janeiro, e a outra, para apresentar o Termo de Cooperação que autorizaria as escavações, 20 dias depois.O tempo era um fator importante para os arqueólogos. Eles queriam realizar as escavações até, no máximo, o fim de fevereiro, para evitar a estação mais chuvosa na Bahia, que começaria nos meses seguintes.O Termo de Cooperação foi assinado em 26 de março. E as escavações só começaram no dia 14 de maio. Assim, o que os arqueólogos queriam evitar acabou sendo inevitável.”Tínhamos dez dias para realizar os estudos no solo, mas perdemos os dois primeiros dias devido à chuva histórica que caiu em Salvador”, conta Jeanne Dias, arqueóloga e coordenadora da pesquisa.Olivieri afirma que o atraso da Santa Casa para responder ao pedido de pesquisa no local prejudicou o início dos trabalhos.”A Santa Casa só respondeu às solicitações de pesquisa no local quando o MP deu um prazo, e ainda assim, atrasou a resposta em um mês”, afirma. “Era para termos escavado o estacionamento em abril, mês em que não choveu em Salvador. Por causa desse atraso da Santa Casa, acabamos fazendo a escavação só em maio, sob fortes chuvas, o que gerou mais dificuldades e custos para nós.”Para ela, a postura da Santa Casa indica uma resistência em colaborar com a pesquisa. “Nossa impressão é que há um grande descontentamento da instituição com a revelação da localização do cemitério, supostamente por atrapalhar o uso da Pupileira.”Mas a Santa Casa afirma que “nenhum prazo deixou de ser cumprido, foi alargado ou mesmo dificultado de modo a prejudicar qualquer tipo de intervenção.” “A acusação de ‘demora’, descumprimento, ou de ação apenas mediante pressão, não condiz, portanto, com a verdade”, afirmou a instituição, por meio de sua assessoria de imprensa. “Tudo foi feito de forma colaborativa, e a Santa Casa nunca se opôs à pesquisa.””O período que se leva para poder chegar a esse acordo foi um período realmente de negociação para que ambas as partes ficassem confortáveis”, completa Rosana Souza, da Santa Casa.De acordo com ela, a casa de eventos da Pupileira e o estacionamento são atividades comerciais cujo lucro ajuda a sustentar as obras de filantropia da instituição. Por isso, era preciso chegar a um acordo que não impedisse por muito tempo o funcionamento daquele estacionamento, que atende, à Santa Casa, à Faculdade, à Caixa Econômica Federal e ao Cartório do Ofício de Registro.”A intervenção do Ministério Público como órgão mediador foi importantíssima para a gente conseguir conciliar essa atividade [de escavação], sem que prejudicasse as atividades comerciais”, diz ela.O estacionamento integra o Patrimônio Imobiliário da Santa Casa. Segundo a instituição, no ano passado, o local movimentou R$ 5,6 milhões. A instituição afirma que o valor é integralmente utilizado para manutenção do próprio Centro de Memória, do Museu da Misericórdia, de 500 alunos dos cinco Centros de Educação Infantil (CEIs), mantidos pela Santa Casa no Bairro da Paz, em Salvador, além de outros projetos sociais.No Termo de Cooperação, os pesquisadores utilizariam duas vagas por vez para as prospecções, que seriam realizados ao longo de dez dias. A instituição não soube informar quantas vagas existem no total. Crédito, Vitor Serrano/BBCLegenda da foto, No material encontrado também estão pedaços de louças, vidros e azulejos que ajudam a indicar o espaço de tempo que aquele lugar existiuEnxoval fúnebreLogo que as escavações foram enfim iniciadas, os pesquisadores confirmaram a suspeita.”O primeiro vestígio encontrado foi um dente”, afirma Luiz Antonio Pacheco de Queiróz, coordenador de campo da pesquisa. “Como estava preservado, com a raiz, isso foi um forte indício de que aquele lugar era um cemitério”No material encontrado também estão pedaços de louças, vidros e azulejos que ajudam a indicar o espaço de tempo que aquele lugar existiu.Com uma pinça, ele mostrou uma pequena conta, parecida com uma miçanga, que, segundo o pesquisador, era parte de um enxoval fúnebre, usado para enterrar pessoas do candomblé.Há muitos registros históricos sobre a existência do cemitério, como do médico e historiador Brás do Amaral. Ele escreve que corpos eram deixados ao redor do cemitério à noite para a Santa Casa recolher e enterrar no dia seguinte, no que era chamado de “sepultamentos de caridade”.”Era um local de limpeza e descarte social, não de despedidas e acolhimento”, afirma a arqueóloga Jeanne Dias.Segundo Dias, naquela época, as pessoas eram enterradas próximo das igrejas. Mas os escravizados eram colocados ali, em valas comuns, sem qualquer ritual ou registro. A Santa Casa da Bahia, no entanto, afirma ter ao menos parte desses registros.”Temos a documentação dessas pessoas que foram sepultadas nesse cemitério, que são os Livros de Banguê”, afirma Rosana Souza. De acordo com ela, eram registradas nesses livros informações como origem do escravizado, nome e etnia. “Essa documentação pertence à Santa Casa de Misericórdia da Bahia, porque era um serviço prestado por ela.”Segundo a própria instituição, esses livros são uma coleção de 11 exemplares que documentam os sepultamentos de pessoas escravizadas, pobres e indigentes entre 1742 e 1853. O banguê era um serviço de condução dos corpos do local do falecimento até o local da sepultura. Não é possível, portanto, afirmar que todas as pessoas registradas ali foram, de fato, sepultadas no Cemitério do Campo da Pólvora. Nem sempre os registros trazem a informação do local da sepultura.Em 2009, os Livros de Banguê receberam o Diploma de Memória do Mundo, concedido pela Unesco.Crédito, Vitor Serrano/BBCLegenda da foto, ‘Minha pergunta era onde estava esse cemitério e como ele desapareceu da cidade’, diz a pesquisadora Silvana Olivieri’Reparação histórica’A pesquisa foi concluída, já que os pesquisadores encontraram material ósseo humano, confirmando a existência de um cemitério local. Assim, o cemitério de escravizados foi registrado como sítio arqueológico junto ao Iphan com o nome de Cemitério dos Africanos. Alexandre Coplas, arqueólogo do Iphan na Bahia, explica que, com esse registro, o sítio arqueológico é considerado um bem da União. “Nada que afete a sua integridade pode ser feito ali”, explica.Ou seja, não é possível mais construir no local. “E se for constatado, por exemplo, que o fluxo de veículos do estacionamento vai causar algum impacto no sítio, o estacionamento pode ser retirado de lá”, diz Coplas. “Nada que possa impactar esse sítio arqueológico pode ser realizado nessa área sem a anuência do Iphan.”Para ele, a descoberta tem grande dimensão. “Em nenhum lugar tem um cemitério de escravizados com uma população estimada tão grande como ali.”Por recomendação do MP-BA, as duas vagas onde o material foi encontrado seguem isoladas no estacionamento. A Santa Casa afirma que aguarda um “laudo técnico” sobre as descobertas para poder estudar o que fazer no local.Essa descoberta motivou a criação do Comitê para Salvaguarda de Cemitérios de Escravizados no Brasil.O comitê envolve outros patrimônios, como o Cemitério dos Aflitos, descoberto em 2018 no tradicional bairro construído por imigrantes japoneses da Liberdade, em São Paulo.O lugar onde hoje lanternas enfeitam as ruas, era, em meados do século 18, o largo da forca, destinado à punição de malfeitores, especialmente escravizados. E junto ao largo, ficava o cemitério e a Capela dos Aflitos, que ainda hoje segue de pé.Da mesma forma, a arqueóloga Jeanne Dias, que coordenou a pesquisa, diz que a descoberta é uma oportunidade de saldar parte de uma dívida. “O reconhecimento desse local é importante para um processo de reparação histórica”, afirma Dias. Olivieri acrescenta: “Nossa intenção é retirar definitivamente da invisibilidade e do esquecimento esse sítio de grande valor histórico, arqueológico, cultural e espiritual, propondo ainda a construção de um memorial em homenagem aos seus mortos, a fim de que sejam tratados com a merecida dignidade, honra e respeito”.
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