Argentina: a tragédia do fentanil contaminado por bactérias super-resistentes



Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Familiares de Daniel Sebastián Oviedo, em meio a uma manifestação na cidade de La Plata, na ArgentinaArticle InformationAuthor, Alejandro Millán ValenciaRole, BBC News MundoHá 10 minutosQuando tinha cinco anos de idade, Leonel Ayala recolheu os restos de uma bola de futebol que havia sido destruída durante um jogo na sua casa em Florencio Varela, na província de Buenos Aires, na Argentina.Ele a consertou em poucos minutos, com a ajuda apenas de uma agulha e um pouco de linha.”Uma das maiores recordações que tenho do meu irmão é que ele era a pessoa mais criativa e habilidosa que já conheci”, conta David Ayala, o irmão mais velho de Leonel, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.Leonel Ayala foi uma das vítimas fatais da aplicação clínica de um lote de fentanil contaminado na Argentina. O episódio foi qualificado como um dos “maiores escândalos de saúde da história do país”.O juiz responsável pelo caso indica 87 mortos, mas a imprensa local afirma que existem outros nove casos sendo investigados.As autoridades investigam as mortes desde o final do ano passado. Elas examinam casos de pacientes que deram entrada em diversos hospitais do país, buscando tratamento para diferentes doenças. E, depois de receberem fentanil como analgésico, elas morreram devido a graves infecções bacterianas.Entretanto, somente em maio deste ano, após reclamações de diversas instituições médicas, essas irregularidades com o fentanil clínico se tornaram conhecidas.As investigações afirmam que pelo menos 300 mil ampolas de fentanil foram infectadas por bactérias super-resistentes e distribuídas em diferentes centros médicos da Argentina.A maior parte dessas ampolas foi produzida pelos laboratórios HLB Pharma Group e Ramallo, que estão sendo investigados pelas autoridades locais.O juiz federal encarregado do caso, Ernesto Kreplak, afirmou que os peritos médicos conseguiram detectar a presença das bactérias Klebsiella pneumoniae e Ralstonia pickettii nas pessoas mortas e nos frascos que continham fentanil.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Foram relatadas até o momento 96 mortes causadas pelo fentanil infectado por bactérias super-resistentes”Foram dois lotes”, declarou o juiz à rede argentina Radio con Vos. “Um deles teve alta circulação e foi amplamente aplicado. Do outro, não se chegou a administrar nenhuma dose.”Os familiares exigem não apenas justiça contra os responsáveis pela negligência médica, mas a elaboração de protocolos que permitam a rastreabilidade de certos medicamentos.”Não se consegue fentanil em uma farmácia”, explica Ayala. “[O produto] é de uso direto e, por isso, não existe forma de determinar precisamente qual lote foi usado ou quais ampolas continuam infectadas.”O caso de Leonel AyalaEm meados de março, Leonel Ayala, formado em Educação Musical, começou a sentir dores abdominais que, pouco a pouco, foram se agravando.”No dia 15 de março, ele foi internado no hospital porque haviam encontrado um cálculo”, conta seu irmão David. “Mas, por uma falha de procedimento, acabaram causando uma pancreatite.”Inicialmente, Leonel Ayala estava sendo tratado na clínica Ranelagh. Mas, depois das complicações, ele foi levado para o Hospital Italiano da cidade de La Plata.No dia 4 de abril, ele foi submetido a uma nova intervenção cirúrgica. Foi neste momento que começou o tratamento para a dor com fentanil.Crédito, Arquivo FamiliarLegenda da foto, Formado em Educação, Leonel Ayala morreu com 32 anos de idade”Passamos dias observando progressos no seu estado de saúde”, relembra o irmão. “Ele começa a falar no celular, do que vai fazer quando se recuperar. Porque, realmente, ele estava se recuperando.”Mas a situação logo sofreu uma reviravolta.”Até 8 de abril, estava perfeito”, prossegue David Ayala. “Depois, começou uma deterioração que não entendemos: primeiro, febre; depois, alguns órgãos deixaram de funcionar.”Foi quando os médicos explicaram que havia uma infecção bacteriana que eles não conseguiam controlar, nem com os medicamentos mais poderosos.”Foi questão de horas”, segundo o irmão. “Quando a bactéria atingiu o cérebro, o médico disse que era melhor nos despedirmos dele. Ele morreu em 8 de abril.”As mortes ocorridas naquele hospital despertaram a investigação. Além de Ayala, morreram pelo menos oito pessoas no Hospital Italiano em um curto espaço de tempo, o que levantou suspeitas.”Eles revisaram todos os implementos médicos, as instalações e não encontraram nada”, segundo David.”Até que decidiram revisar as ampolas de fentanil, que era um fator comum entre todas as vítimas, e perceberam que elas estavam infectadas.”Chat de familiares das vítimasA BBC News Mundo teve acesso a um grupo de bate-papo dos familiares das vítimas do fentanil infectado. O grupo se chama “Unidos pela justiça das vítimas do fentanil mortal”.Nele, as pessoas se reúnem com a mesma pergunta. Elas tentam descobrir se os casos dos seus familiares envolvem possíveis infecções.”Meu pai passou por uma cirurgia, na qual tudo saiu bem”, diz um dos testemunhos. “No domingo, detectaram uma bactéria muito agressiva e, agora, ele está em coma.”A filha quer saber se seu pai é mais uma vítima do fentanil infectado.Crédito, Arquivo FamiliarLegenda da foto, Daniel Sebastián Oviedo morreu com 42 anos de idade, devido à aplicação de fentanil infectado”A incerteza é enorme, declarou Sandra Altamirano à BBC. Seu filho morreu supostamente devido ao fentanil contaminado.”Existem mais de 150 mil ampolas infectadas e não sabemos onde nem como foi utilizada a maioria delas porque não há registros”, explica ela.”Meu filho, Daniel Sebastián Oviedo, de 42 anos, morreu após ser tratado com fentanil infectado no Hospital Italiano de La Plata. Ele entrou para ser tratado de um problema com sua diálise e acabou morto.”Altamirano afirma que detém um histórico clínico de 600 páginas. No grupo de bate-papo, eles tentam orientar os familiares a pesquisar o histórico clínico dos pacientes, para poder determinar se eles foram vítimas das ampolas infectadas.”O que queremos é justiça, não só em relação aos laboratórios, mas para toda a cadeia de produção”, destaca ela, “porque não entendemos como pode ter acontecido algo assim, nesta escala, sem nenhum tipo de controle.”Atualmente, a investigação se encontra em fase de apuração. O juiz Kreplak ordenou a apreensão de todos os lotes de fentanil suspeitos e informou que mais de 24 pessoas estão sob investigação neste caso.Já os familiares se reuniram com líderes políticos no Congresso argentino. Eles reivindicam ações para evitar que algo similar possa se repetir no futuro.”Sei que não temos o tempo da Justiça, não na velocidade em que queremos uma resolução. Mas queremos que as pessoas responsáveis por esta tragédia respondam pelos seus delitos”, conclui Altamirano.



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