Embraer: como a fabricante brasileira virou referência na aviação — e qual será o impacto de tarifas de Trump



Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Jatos da linha E1 Embraer se enquadram em critérios do mercado americano que fazem com que eles não tenham substitutos diretosArticle InformationAuthor, Alessandra CorrêaRole, De Washington para a BBC News BrasilHá 22 minutosA fabricante de aviões é a principal exportadora de bens de alto valor agregado do Brasil e tem nos Estados Unidos seu mercado mais importante.Na terça-feira (15/07), em entrevista coletiva para comentar o possível impacto das tarifas, o CEO da Embraer, Francisco Gomes Neto, lembrou que a empresa está presente nos EUA há mais de 45 anos e sustenta quase 3 mil empregos no país.”As exportações para clientes nos Estados Unidos representam 45% nos jatos comerciais e 70% nos jatos executivos”, ressaltou Gomes Neto.A Embraer tem forte presença no mercado de aviação regional dos EUA, onde muitas rotas domésticas curtas são servidas por aeronaves de menor porte. De acordo com a empresa brasileira, cerca de um terço dos voos regionais em grandes aeroportos daquele país são operados com aviões da Embraer.Em meio às incertezas que cercam o anúncio de Trump, ainda é cedo para entender em detalhes como a empresa será afetada. Mas a preocupação gerada nos últimos dias chama a atenção para a trajetória da Embraer e como ela se tornou referência na indústria aeroespacial.”Há todo um contexto por trás, envolvendo o que a Embraer pode fornecer para o mercado americano que outras empresas não podem. A Embraer hoje atua quase sozinha nesse mercado nos EUA. Por isso ficou tão dominante”, diz à BBC News Brasil o economista Gustavo Cruz, estrategista-chefe da RB Investimentos.Nascimento e primeiros modelosCom sede em São José dos Campos (SP), fabrica aviões militares, comerciais, executivos e agrícolas. De acordo com a empresa, em toda a sua história já produziu e entregou mais de 9 mil aeronaves para mais de 100 países.A empresa foi fundada em 1969, com o apoio do governo brasileiro, após décadas de esforços privados e governamentais para desenvolver uma indústria aeronáutica competitiva no Brasil. Além de criar um setor industrial de alta tecnologia, havia o objetivo de facilitar a conexão de diferentes partes do país.As origens da então chamada Empresa Brasileira de Aeronáutica estão ligadas ao Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Foram técnicos formados pelo instituto que, em 1965, começaram a trabalhar em um projeto liderado pelo engenheiro aeronáutico e então major da Força Aérea Brasileira (FAB) Ozires Silva.O projeto envolvia um avião bimotor turboélice com capacidade para cerca de 20 passageiros. Um protótipo da aeronave, batizada de Bandeirante, fez seu primeiro voo em 1968.O Bandeirante tinha entre suas vantagens a capacidade de operar em pistas curtas e não pavimentadas, chegando a aeroportos menores, que não tinham estrutura para receber jatos de grande porte. Assim, poderia conectar regiões mais isoladas, impulsionando a aviação regional e a integração do país.Foi nesse contexto que, em 19 de agosto de 1969, nasceu a Embraer, criada para a produção em série do Bandeirante — inicialmente desenvolvido pelo CTA — e tendo Ozires Silva como presidente.A partir de 1970 e ao longo daquela década, outras aeronaves desenvolvidas pela empresa ganharam destaque, entre elas o monomotor EMB-200 Ipanema, para pulverização agrícola.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Fundada em 1969 e com sede em São José dos Campos (SP), a Embraer fabrica aviões militares, comerciais, executivos e agrícolasTambém são desse período o EMB-326 Xavante, primeiro avião a jato produzido no Brasil, fabricado sob licença da companhia italiana Aermacchi e usado no treinamento de pilotos militares; e o EMB-121 Xingu, primeiro turboélice pressurizado fabricado pela empresa para uso executivo.A década de 1980 foi marcada por saltos tecnológicos e uma crescente presença internacional. O Bandeirante passou a ser vendido para vários países e entrou no mercado norte-americano.Entre outros modelos de destaque lançados nessa época estão o EMB 120 Brasília, com capacidade para 30 passageiros; o EMB 312 Tucano, para a área de defesa e treinamento militar; e o AMX, caça subsônico produzido em parceria ítalo-brasileira.Altos e baixosAo longo de sua trajetória, a Embraer enfrentou altos e baixos. A empresa quase chegou à falência em meio à crise financeira do final da década de 1980.”Um período mais intenso de turbulência financeira marcou o início da década de 1990 e levou à privatização da Embraer em dezembro de 1994″, lembrou a empresa no ano passado, ao comemorar seus 55 anos.A Embraer foi privatizada no fim do governo do presidente Itamar Franco, depois de um longo processo, por R$ 154,1 milhões (em valores da época). O acordo de privatização garantiu ao governo brasileiro a chamada golden share, ação preferencial que dá direito a veto a decisões estratégicas, como a transferência de controle acionário — e que permanece em vigor.Entre os projetos que impulsionaram a recuperação após a reestruturação está o do ERJ-145, jato comercial para até 50 passageiros, além de outros modelos da mesma família. Também teve papel importante o programa de E-jets de aviões comerciais, focado no segmento de 70 a 120 assentos.No início dos anos 2000, a Embraer estava entre os maiores exportadores do Brasil. A empresa diz que a expansão global “acompanhou uma estratégia de diversificação” e destaca a criação da divisão de aviação executiva — com o lançamento dos jatos da família Legacy 600/650, Phenom 100, Phenom 300, Lineage 1000, e Legacy 450/500, além do EMB-314 Super Tucano na área de defesa.O processo de internacionalização ganhou força a partir de 2010, incluindo atividades industriais nos EUA, em Portugal e no México. Também nessa década, foram lançados produtos como os E-Jets de segunda geração, os jatos executivos Praetor 500 e Praetor 600 e o C-390.Boeing e pandemiaA americana pagaria US$ 4,2 bilhões (cerca de R$ 16,4 bilhões na época) pela compra. Com a parceria, a Boeing ganharia vantagens no segmento de aeronaves de médio e pequeno porte, para voos regionais, no qual a Embraer é líder.No entanto, em abril de 2020, a Boeing anunciou que rescindiu o acordo “após a Embraer não ter atendido as condições necessárias”. A empresa brasileira considerou a rescisão indevida e disse que a americana havia fabricado “falsas alegações como pretexto para tentar evitar seus compromissos”.No ano passado, a Embraer anunciou que iria receber US$ 150 milhões da Boeing em acordo para encerrar processo de arbitragem.O fracasso da parceria com a Boeing ocorreu em meio à pandemia de covid-19 e ao subsequente encolhimento no mercado de aviões civis, com restrições e proibições de viagens.Na entrevista coletiva de 15 de julho, o CEO da Embraer lembrou que, durante a pandemia, a empresa teve queda de receita um pouco superior a 30% e precisou reduzir cerca de 20% do quadro de funcionários.Os possíveis impactos das tarifasSegundo Gomes Neto, o impacto das tarifas poderá ser comparável ao da pandemia. O CEO disse que uma taxa de 50% deverá gerar custo adicional de R$ 50 milhões por avião e um impacto de quase R$ 2 bilhões em tarifas apenas neste ano, e de R$ 20 bilhões até 2030.Entre os possíveis problemas listados por Gomes Neto estão cancelamento de pedidos, postergação de entregas, redução de investimentos, queda de receita e possível ajuste no quadro de funcionários, entre outros. Ele disse, porém, confiar que o governo brasileiro vai buscar uma solução e que negociações possam reverter a alíquota.Na linha de jatos executivos da Embraer, alguns modelos têm montagem final na Flórida, o que poderia diminuir o impacto. No entanto, incluem componentes fabricados no Brasil.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, CEO da Embraer, Francisco Gomes Neto, comparou impacto das tarifas de Trump à pandemiaUm ponto relevante em relação ao mercado americano é a chamada scope clause, cláusula de contratos entre companhias aéreas e sindicatos de pilotos que determina limites no peso máximo e número de assentos das aeronaves em alguns tipos de voos regionais.Jatos da linha E1 Embraer se enquadram nos critérios e não têm substituto direto, favorecendo a liderança da empresa no segmento.Gustavo Cruz, da RB Investimentos, observa que, diferentemente de commodities, aeronaves não são facilmente substituíveis. Por isso, ele afirma que as tarifas também devem prejudicar empresas americanas.”Não existe a possibilidade de você achar alguém que tenha disponibilidade de entregar um avião com as características específicas necessárias para atuar na aviação regional americana daqui para o final do ano”, ressalta.Poucas fornecedorasCruz afirma que companhias aéreas americanas com planos de expansão nos próximos meses e anos estão contando com a entrega das aeronaves da Embraer.”Seria algo bem inesperado elas terem que arcar, pelo menos com uma parte desse custo a mais, nos próximos anos”, salienta.”Temos a Boeing e a Airbus já com praticamente toda a esteira de pedidos ocupada até 2030. Não é que elas podem chegar a absorver esses aviões que seriam entregues pela Embraer”, diz o analista.”Diante disso, imagino que as próprias companhias aéreas americanas vão pressionar o governo para que não inclua os aviões da Embraer dentro dessa tarifa de 50%.”Cruz destaca que a fabricante brasileira vende para o mundo inteiro. “A gente vê a Embraer vendendo para praticamente todos os continentes, para muitos países, vários acordos sendo anunciados”, afirma.Neste mês, foi anunciado que a Scandinavian Airlines (SAS), sediada na Suécia, firmou acordo para comprar 45 jatos E195-E2, com direitos de compra para 10 aeronaves adicionais.Segundo a Embraer, “excluindo os direitos de compra, o valor do pedido é de aproximadamente US$ 4 bilhões (cerca de R$ 22 bilhões)”, e as primeiras entregas estão previstas para o fim de 2027.”Como a gente tem um mercado mundial de fabricação de aviões muito pequeno, são poucas as empresas que fornecem. Ela [Embraer] acaba se beneficiando de um excesso de pedidos da Boeing e da Airbus”, diz Cruz.”Você tem milhares de companhias aéreas no mundo e praticamente três fornecedoras. O poder está muito mais na mão da Embraer — e da Boeing e Airbus — do que o contrário”, conclui o economista.



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