Início GERAL Onda de homicídios aterroriza Cáceres; 32 mortes em agosto 

Onda de homicídios aterroriza Cáceres; 32 mortes em agosto 



Por João Arruda | Cáceres 
A cidade de Cáceres (a 210 km de Cuiabá) encerrou o mês de agosto de 2024 sob o terror de uma onda de violência sem precedentes, registrando um assustador balanço de 32 homicídios. A maioria dos crimes, perpetrados com o uso de armas pesadas como pistolas e escopetas, é atribuída a uma guerra sangrenta entre facções rivais, que disputam o controle total do município, tanto na área urbana quanto na rural.
Delegado Regional de Cáceres, Higo Rafael de Oliveira
O delegado regional Higo Rafael de Oliveira não hesita em classificar o cenário como uma “matança” impulsionada por uma feroz disputa territorial. A localização estratégica de Cáceres, na vasta fronteira de Mato Grosso com a Bolívia, a transforma em um corredor vital para o tráfico de drogas originárias da Bolívia, Peru e até mesmo de cartéis colombianos, intensificando a cobiça dos grupos criminosos.
Violência nos bairros e o drama de uma Família
A brutalidade dos confrontos se manifesta de forma mais explícita nos bairros periféricos. Um dos episódios mais recentes e emblemáticos ocorreu na Vila Irene, zona Norte da cidade, onde dois criminosos invadiram um pequeno comércio. A vítima, um comerciante, reagiu instintivamente ao jogar um aparelho celular. Por um triz, um disparo atingiu de raspão seu olho, e um “tiro de misericórdia” desferido na sequência falhou em acertar o alvo já caído. A rápida intervenção da Força Tática da Polícia Militar resultou na prisão de um dos agressores, que foi alvejado após atirar contra os policiais. Tanto a vítima quanto os criminosos estão fora de perigo. O drama do comerciante, contudo, é ainda mais profundo: há apenas cinco meses, ele perdeu dois filhos, assassinados a tiros dentro do mesmo estabelecimento, em decorrência da mesma guerra entre facções.
Dos 32 homicídios contabilizados em agosto, 29 foram em Cáceres, enquanto três se estenderam até Várzea Grande, revelando a capilaridade e a metodologia implacável dos grupos criminosos. Um dos casos em Várzea Grande vitimou Valdeir dos Santos Souza, o “Sujeira”, de 40 anos, que foi atraído para uma emboscada na Cidade Industrial. Após ser rendido e executado, seu corpo foi “envelopado” – gíria usada por faccionados para indicar que foi envolto em lençol – e abandonado no baú de seu caminhão às margens da Rodovia dos Imigrantes. O detalhe mais chocante é que, 48 horas antes da localização do corpo pela polícia, uma fotografia de “Sujeira” já circulava nas redes sociais com a legenda “CPF cancelado, trem bala”, evidenciando a frieza e a coordenação interna dessas organizações. Valdeir, apesar de um passado ligado ao tráfico e homicídio, tentava uma vida lícita, tendo aberto duas lanchonetes e batizado seu veículo com nomes que faziam clara alusão ao extinto artigo 12 do Código Penal, referente ao tráfico de entorpecentes.
Os outros dois jovens assassinados em Várzea Grande também estavam em uma “lista de jurados de morte” em Cáceres e encontravam-se internados em uma clínica de tratamento para dependentes químicos, demonstrando que a “disciplina” das facções os alcança mesmo fora do município de origem.
A Estrutura do Crime e a Atuação da Polícia
Em entrevista exclusiva ao Portal Matogrosso, o delegado Higo Rafael detalhou o modus operandi das facções, revelando que os grupos firmaram uma trégua em março deste ano, que durou até julho, quando os assassinatos recomeçaram, elevando “de maneira assombrosa” as estatísticas.
“As agências de inteligência trabalham de forma integrada e com fluxo constante de informações, mas não dá para prever ou evitar todas as ações. O trabalho das inteligências é extremamente efetivo na região de Cáceres no antes, durante e depois do crime”, afirmou o delegado.
Higo Rafael explicou a estrutura hierárquica do crime organizado: os faccionados são “campanados” por uma pessoa que reside em Cáceres, conhecida como “Geral de Cáceres” (podendo ser homem ou mulher). Este indivíduo é responsável por reportar a situação à “Disciplina”, que então emite advertências ou executa ordens. O “escalão superior”, sediado em Cuiabá, coordena as execuções, provendo a logística necessária: carros novos, armas e os pistoleiros, que, em quase todos os registros de homicídios, vêm de outras cidades como Pontes e Lacerda, Rondonópolis e Jaciara.
O delegado citou o assassinato do comerciante João Bosco Coimbra Ferreira, em 27 de junho, como exemplo. Os dois assassinos vieram de Pontes e Lacerda, receberam hospedagem, armas e foram auxiliados por um “olheiro” local. O caso, segundo Higo Rafael, está elucidado. Dois dias após o crime, a Polícia Militar apreendeu armas e, com base nas características físicas de um dos suspeitos, obteve a confissão e a entrega do mandante, já preso em Cáceres, enquanto os executores foram transferidos para o presídio de Sinop por segurança.
Desafios na investigação e o silêncio do medo
Apesar dos avanços, o delegado Higo Rafael reconhece os desafios em solucionar crimes de grande repercussão. As investigações esbarram no temor das testemunhas e até de parentes, que preferem o silêncio. “Na verdade o que mais dificulta dar andamento nesses crimes é a alta demanda de homicídios, tentativas e o baixo efetivo. Na época da trégua, onde Cáceres passou 150 dias sem homicídios, foi possível dar andamento a esses inquéritos remanescentes, mas atualmente a demanda do ano consome os esforços de todo efetivo e esses mais antigos que não tiveram resolução vão ficando para uma hora oportuna”, explicou.
Casos como as mortes de Juliano Marchesi e do pecuarista Maurício Curvo de Lima, ambos ocorridos em 2017, possuem fortes indícios de autoria, mas carecem de mais diligências. Outros assassinatos ainda sem solução incluem o do autônomo José Roberto Gomes de Arruda, o “Robertinho”, executado com escopeta calibre 12 em sua chácara enquanto dormia – um fato peculiar, já que ele criava mais de dez cães de caça que não estranharam a entrada do assassino. O inquérito da morte do comandante José Carlos Cordeiro, ocorrido há poucos anos, também permanece em silêncio. Cordeiro, conhecido como um cidadão pacato, com uma fábrica de gelo e atuante em telecomunicações, teve um verdadeiro arsenal de armas e munições descoberto em sua residência pela Polícia Militar após sua morte.
A situação em Cáceres é um retrato sombrio da criminalidade organizada, onde a disputa por territórios do tráfico transforma a cidade em um campo de batalha constante, desafiando as forças de segurança e impondo um custo humano incalculável à população.



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