Os novos judeus do Nordeste que redefinem a religião no Brasil e chamam atenção de Israel



Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Instituto israelense estima que 30 mil brasileiros com ancestralidade judaica já retornaram ao judaísmoArticle InformationAuthor, João Fellet e Felix LimaRole, Enviados da BBC News Brasil ao NordesteHá 33 minutosEm Messejana, bairro pobre na periferia de Fortaleza, capital do Ceará, uma construção de tijolinhos com estrelas de Davi e candelabros na fachada destoa das casas vizinhas.Antes de virar a sinagoga Beitel, em 2014, o edifício abrigava uma igreja evangélica que foi se tornando “cada vez mais judaica”, conta Flávio Santos, um dos líderes da comunidade e seu cantor litúrgico.Negro e criado em uma família evangélica, Flávio personifica a jornada de vários bnei anussim — expressão que significa “os filhos dos forçados” em hebraico e se refere aos judeus compelidos a se converter ao cristianismo na Península Ibérica, no século 15.Os bnei anussim dizem ter laços sanguíneos com esses judeus de origem ibérica, também chamados de judeus sefarditas ou sefaradim. Ao serem convertidos à força pela Inquisição, passaram a ser conhecidos como cristãos-novos. Vários séculos depois, milhares de seus descendentes estão retornando ao judaísmo — um movimento com epicentro em bairros periféricos e pequenas cidades da região Nordeste.Como resultado, judeus convertidos fundaram nos últimos anos várias sinagogas Brasil afora, muitas delas em locais sem qualquer presença judaica até então.O movimento já produz efeitos em Israel, onde parte desses convertidos passou a viver e até a servir no Exército, mas também vem enfrentando resistências em algumas comunidades judaicas tradicionais brasileiras.A história é contada no documentário Os novos judeus do Nordeste: a tribo perdida do sertão, disponível no canal da BBC News Brasil no YouTube, resultado de uma expedição que percorreu mais de mil quilômetros em quatro Estados para retratar este fenômeno.Play video, “Quem são os novos judeus do Nordeste, que fundam sinagogas e chamam atenção de Israel”, Duration 29,3429:34Legenda do vídeo, Quem são os novos judeus do Nordeste, que fundam sinagogas e chamam atenção de IsraelDe evangélico a judeuFlávio Santos diz que, em seus primórdios, a igreja evangélica em Messejana que viraria a sinagoga Beitel dava grande ênfase ao Antigo Testamento. Depois, a comunidade aderiu ao judaísmo messiânico, que combina práticas judaicas com a adoração a Jesus, mas não é considerado parte do judaísmo pela maioria dos rabinos.Até que, por volta de 2018, o grupo abandonou a fé em Cristo e aderiu ao judaísmo ortodoxo, corrente que eles consideram mais próxima da religião praticada nos tempos bíblicos.Flávio diz que, para boa parte da comunidade, a adesão ao judaísmo significou um regresso à fé de seus antepassados. Como ele, muitos na sinagoga dizem ter descoberto vínculos com o judaísmo ao estudarem a história de suas famílias, montarem suas árvores genealógicas ou fazerem testes genéticos. Flávio, no caso, diz ter percebido possíveis laços familiares com a religião ao analisar práticas de uma avó nascida no interior de Alagoas, como o costume de se banhar na sexta-feira à tarde e a recusa dela em apontar para estrelas com os dedos.Para ele e outros bnei anussim, a primeira prática é uma reminiscência dos preparos para o shabat, o dia sagrado do judaísmo, enquanto o segundo estaria ligado ao medo que judeus tinham de serem denunciados durante a Inquisição, já que o aparecimento das estrelas marcava o fim do shabat.A avó dele, porém, se definia como cristã e desconhecia qualquer vínculo com o judaísmo — algo que Flávio atribui aos séculos de repressão contra a religião.Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Cerimônia religiosa na sinagoga Beitel, em Messejana, na periferia de FortalezaHoje, segundo ele, a sinagoga tem 45 membros já convertidos. Os trabalhos religiosos são orientados à distância por um rabino de Israel.O movimento de retorno ao judaísmo no Nordeste teve seus primeiros capítulos nos anos 1960, quando pessoas nascidas católicas passaram a reivindicar laços sanguíneos e culturais com a religião e a frequentar sinagogas em cidades como Recife e Natal.Os pioneiros do movimento eram conhecidos como “marranos”, antiga alcunha pejorativa que significa “porcos”, em espanhol, mas foi apropriada pelo grupo.A novidade dos últimos anos é o surgimento de várias comunidades formadas só por judeus convertidos e a grande presença de ex-evangélicos entre seus membros.No Recife, a tradicional Synagoga Israelita, fundada em 1926 por judeus do Leste Europeu e que foi frequentada pela família da escritora Clarice Lispector (1920-1977), hoje é dirigida e frequentada quase exclusivamente por bnei anussim.O movimento ocorre ainda em meio à explosão de cursos online sobre judaísmo e o papel de judeus e cristãos-novos na história do Brasil.Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Judia na Synagoga Israelita do Recife, hoje frequentada quase exclusivamente pela comunidade bnei anussim.Quantos judeus há no Brasil?Não há dados oficiais sobre a quantidade de convertidos ao judaísmo no Brasil, e o último Censo, de 2022, não apresentou informações sobre judeus em seu levantamento sobre religiões.O Censo anterior, de 2010, contabilizou 107 mil, e a Confederação Israelita do Brasil (Conib) estima em 120 mil.Há indícios, porém, de que o número esteja aumentando. Em 2021, uma pesquisa do Samuel Neamen Institute, um centro de estudos de Israel, estimou que 30 mil bnei anussim brasileiros se converteram ao judaísmo nos últimos anos.Segundo a pesquisa, há ainda 4 milhões de brasileiros com ancestralidade judaica que poderiam se enquadrar na categoria bnei anussim, mas ainda não se converteram.Para o escritor pernambucano Jacques Ribemboim, autor de livros sobre a história do judaísmo no Nordeste, o número de nordestinos com antepassados judeus pode ser ainda maior e superar até a população de Israel, de 10 milhões de habitantes.”Há no Nordeste brasileiro um potencial para algumas dezenas de milhões de descendentes de judeus que podem eventualmente voltar a se identificar com o judaísmo e a vontade de retomar a prática judaica”, afirma Ribemboim.”É um fenômeno extraordinário”, acrescenta o escritor, ele próprio judeu, mas do ramo asquenazi, da Europa Oriental.Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Para o escritor Jacques Ribemboim, pode haver dezenas de milhões de nordestinos com ancestralidade judaica.Convertidos no Exército israelenseQuando a BBC News Brasil esteve na sinagoga de Messejana, havia um visitante de destaque: um antigo membro da comunidade que hoje mora em Israel e é soldado do Exército israelense.De férias no Brasil, o jovem não quis falar sobre a atuação como militar e pediu para não ter a identidade revelada, citando preocupações com a segurança.Em uma rápida conversa, disse ter se convertido ao judaísmo há poucos anos e obtido a cidadania israelense por meio da aliá — nome do processo legal pelo qual qualquer judeu pode se tornar cidadão do país.Membros da sinagoga afirmaram que há ainda outro ex-frequentador que hoje é militar em Israel. “Eles servem ao Estado de Israel, mas, mais que isso, servem ao povo judeu como um todo”, afirma Flávio Santos, o cantor litúrgico da sinagoga.Cerca de 1,2 mil pessoas morreram no ataque do Hamas e outras 257 foram sequestradas. Já na resposta israelense morreram mais de 60 mil palestinos, incluindo 18,5 mil crianças e 9,8 mil mulheres, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas.”É algo duro de assistir”, diz Flávio sobre a morte de civis palestinos. “Mas é uma questão de soberania nacional, de defesa da população.”Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Em Tibau (RN), primeiras conversões ao judaísmo ocorreram em 2016.Mudança de país (e de nome)Há casos de famílias inteiras de judeus convertidos nordestinos que hoje vivem em Israel, embora a maioria das pessoas migre sozinha.Uma antiga frequentadora da sinagoga em Messejana que hoje mora em Israel é Shoshana Lima, de 25 anos.Formada em Jornalismo na Universidade Federal do Ceará, ela visitou a sinagoga pela primeira vez em 2022 e se converteu no ano seguinte. Meses depois, mudou-se sozinha para Israel e se tornou israelense neste ano.Shoshana diz que jamais soube de qualquer vínculo familiar com o judaísmo e que “se sentiu em casa” ao visitar a sinagoga pela primeira vez, em um momento em que estava em busca de uma religião e de “pertencer a uma comunidade”. Ao migrar para Israel, a jovem teve a opção de trocar de nome. Ela escolheu Shoshana — que significa “rosa” ou “lírio” em hebraico — e abandonou o anterior, Suyane.Em Israel, onde pretende se casar e trabalhar na área de tecnologia, Shoshana diz ter vivenciado uma liberdade inédita: “Não preciso explicar para ninguém por que eu não toco um homem ou por que uso as roupas que uso”.Em sua visão, Israel está agindo para evitar um novo ataque do Hamas. “Espero que haja paz, mas as pessoas precisam parar de ver essa guerra como preto no branco.”Crédito, Arquivo PessoalLegenda da foto, A jornalista Shoshana Lima se converteu ao judaísmo e hoje mora em IsraelEra de ouro do judaísmoEngana-se, porém, quem pensa haver unidade política e um alinhamento automático entre os bnei anussim e o governo israelense.O historiador Aldrey Ribeiro, de 31 anos, é o líder da sinagoga Branca Dias, fundada por judeus convertidos em Campina Grande, no interior da Paraíba.O nome da sinagoga homenageia a luso-brasileira Branca Dias (1515-1589), condenada pela Inquisição por praticar o judaísmo em Olinda.Para Aldrey, os palestinos também devem ter seu próprio Estado — uma posição que é rejeitada pelo governo de Israel e é minoritária entre a população israelense, segundo pesquisas recentes.Ele diz ainda que metade de sua congregação tem posições de esquerda, e a outra metade, de direita — o que não é um problema para o grupo.Para Aldrey, os bnei anussim são herdeiros da “era de ouro do judaísmo”, período em que judeus, cristãos e muçulmanos conviviam na Península Ibérica antes da Inquisição.”Foi a época em que o judaísmo mais floresceu nas artes, nas ciências e na poesia, e o segredo para isso era saber dialogar com o outro”, afirma o historiador. “Por carregar essa herança, nós, bnei anussim, sabemos conviver com diferenças.”Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Aldrey Ribeiro se formou em História para estudar origem judaica da famíliaAldrey afirma ainda que, ao investigar o passado de sua família, fez testes de DNA que detectaram genes comuns entre populações judaicas e que, ao montar sua árvore genealógica, descobriu ser descendente de um rabino que viveu na Espanha no século 15.Para ele, o retorno dos bnei anussim ao judaísmo é uma “reparação histórica”. “A possibilidade de ser judeu foi roubada da gente, e isso é muito dolorido”, diz.Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Povoado Tapuia, na Paraíba, abriga vestígios de judaísmo, segundo historiadorPerseguidos pela InquisiçãoOs judeus chegaram à Península Ibérica depois da destruição de Jerusalém pelo Império Romano, no ano 70, e viveram ali séculos de relativa liberdade religiosa.Até que, em 1492, eles foram expulsos da Espanha por reis católicos que buscavam a unificação religiosa do reino.Cinco anos depois, foi a vez de Portugal obrigá-los a deixar o país ou a se converter ao cristianismo.Mesmo após a conversão, no entanto, muitos continuaram a ser perseguidos pela Inquisição, tribunal criado pela Igreja Católica no século 12 para punir heresias.Segundo o pesquisador Jacques Ribemboim, muitas famílias cristãs-novas viram então no Brasil uma chance de praticar o judaísmo às escondidas.Em Olinda, uma das maiores cidades do Brasil nos primórdios da colonização, os cristãos-novos chegaram a compor entre um terço e metade da população local, afirma Ribemboim.O grupo pôde até professar o judaísmo abertamente por um curto período, no século 17, quando holandeses assumiram o controle de boa parte da região Nordeste e estabeleceram um regime de maior tolerância religiosa.Em 1654, porém, com a expulsão dos holandeses, os judeus foram obrigados a voltar à cristandade.”Então, eles começam a se interiorizar, e só ficou alguma prática judaica, aqui e ali, em algum bolsão remoto dos sertões brasileiros”, diz Ribemboim.Para ele, é possível que algumas dessas práticas judaicas tenham sobrevivido nas famílias bnei anussim atuais, mas os vários séculos transcorridos impedem uma comprovação categórica dos vínculos. “Como pesquisador, tenho de tratar essas possíveis conexões como hipóteses.”Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Grupos bnei anussim dizem ter herdado tradições judaicas de seus antepassadosJudeus convertidos brasileiros em IsraelNão se sabe quantos brasileiros convertidos ao judaísmo moram em Israel, porque os dados do governo israelense não diferenciam judeus convertidos de não convertidos. Segundo o governo de Israel, 257 brasileiros se tornaram cidadãos israelenses em 2024 — número próximo ao da média histórica, mas abaixo ao de anos anteriores à guerra em Gaza.Não há dados sobre quantos membros do Exército israelense nasceram no Brasil.Comunidades visitadas pela BBC News Brasil estimaram em “algumas centenas” os bnei anussim brasileiros que hoje moram em Israel.Líderes comunitários disseram que a maioria dos bnei anussim não pretende deixar o Brasil, mas que a presença do grupo em Israel poderia ser maior não fossem algumas barreiras enfrentadas pelo grupo.O comerciante Antonio Fabiano de Oliveira Cavalcante é o líder da comunidade judaica ortodoxa de Tibau, cidade com 5,6 mil habitantes no litoral do Rio Grande do Norte.Fundada em 2014, a sinagoga da cidade tem cerca de 40 membros e um redário para hospedar integrantes durante o shabat. Em períodos de festas, alguns chegam a passar três dias seguidos dentro da sinagoga.A própria comunidade abate os animais que consome, seguindo os ritos da lei dietética judaica, e hoje todos os meninos são circuncidados oito dias após nascerem, conforme manda a Lei Judaica.As rezas na sinagoga são em hebraico e em ladino, antiga língua dos judeus sefarditas, mas têm um quê regional: alguns cantos litúrgicos ganharam a melodia de clássicos da música nordestina, como Asa Branca, de Luiz Gonzaga, e Eu só quero um xodó, de Dominguinhos.Outra particularidade dos bnei anussim nordestinos são as vestimentas do dia a dia. Enquanto muitos judeus ortodoxos do ramo asquenazi (Leste Europeu) costumam vestir ternos escuros e chapéus, os bnei anussim têm como referência as roupas mais leves do judaísmo sefardita, mais adequadas aos trópicos.Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Comunidade judaica em Tibau (RN) tem mais de 40 integrantes.Apesar do rigor com que o grupo diz viver a religião, Antonio Fabiano afirma que algumas pessoas no Brasil ainda questionam seu judaísmo.Ele afirma que a principal dificuldade da comunidade é enviar os jovens para um período de estudos em Israel — prática comum entre judeus de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.Há vários programas de estudos em Israel financiados pelo governo israelense. A seleção para parte desses programas é feita pela Agência Judaica, órgão ligado ao Ministério do Interior israelense com escritórios no Brasil.A agência também faz uma triagem dos judeus interessados em fazer a aliá e migrar legalmente para Israel com as despesas custeadas pelo governo israelense.Antonio Fabiano afirma, porém, que bnei anussim não filiados a congregações judaicas tradicionais ainda são barrados nas seleções, o que os obriga a buscar outros caminhos e a bancar a viagem do próprio bolso.A BBC News Brasil questionou a Agência Judaica e o Ministério do Interior israelense sobre queixas de que os bnei anussim estariam sendo preteridos nas seleções, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.Em um processo judicial recente, o ministério israelense expressou a preocupação de que pessoas de países pobres estejam usando possíveis laços com o judaísmo como desculpa para migrar para Israel e obter vantagens econômicas. Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Educadora Jacqueline Passy discursa na sinagoga Branca Dias, em Campina GrandeA educadora Jacqueline Passy, uma judia nascida no Rio de Janeiro que há mais dez anos assessora grupos bnei anussim,diz compreender que o movimento desperte receios em Israel.”Eles pensam: ‘Onde vamos botar 40 milhões de pessoas?'”, diz Passy, citando uma das estimativas mais elevadas da população bnei anussim no Brasil. Mas ela diz acreditar que os temores estão diminuindo conforme Israel percebe que o grupo pode contribuir com o país e não pretende imigrar em massa.”São pessoas que querem botar a mão na terra, e Israel precisa dessa gente”, defende Passy.Ela diz que já prestou consultoria a milhares de bnei anussim, dos quais 70 hoje são cidadãos israelenses. Para atender o grupo, ela criou uma escola online sobre judaísmo, a Raízes Judaicas do Brasil.A BBC News Brasil também procurou a Confederação Israelita do Brasil (Conib) para saber a posição da entidade sobre o movimento bnei anussim e as reclamações de comunidades quanto à falta de diálogo com instituições judaicas tradicionais.Em nota, a Conib não comentou as críticas, mas disse ver “com satisfação esse grande movimento de apoio e pertencimento ao judaísmo e a Israel”.”A relação do nosso país com o judaísmo é profunda e muito antiga, e esse fenômeno religioso é mais uma prova disso”, afirmou a confederação.Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Moradora do povoado Caracolzinho (PB), onde historiador Aldrey Ribeiro diz ter encontrado vestígios de judaísmo Barrado à porta da sinagogaOs bnei anussim citam ainda outros problemas na convivência com congregações judaicas tradicionais.Aldrey Ribeiro, o historiador que lidera a sinagoga em Campina Grande, descreve um episódio que diz ter vivido há alguns anos durante uma visita a São Paulo.Acompanhado por um grupo de judeus paulistanos, ele pretendia visitar uma grande sinagoga, que prefere não nomear.À porta, porém, diz ter sido barrado pelo segurança. “Ele perguntou meu sobrenome, e eu falei com todo orgulho: ‘Ribeiro’. Então, ele falou: ‘Não entra’.”Já os outros judeus que o acompanhavam, todos de famílias judias de imigração recente, puderam entrar, segundo o historiador.Ribeiro diz que o segurança não explicou a decisão e que ele saiu de lá constrangido e envergonhado.Para o historiador, o episódio ilustra o “preconceito” com que, segundo ele, os bnei anussim ainda são tratados por parte da comunidade judaica brasileira, algo que também se manifesta nos obstáculos à conversão em congregações tradicionais, diz Ribeiro.Vários líderes do movimento disseram à BBC News Brasil que tiveram de buscar rabinos estrangeiros, porque encontraram portas fechadas em muitas sinagogas brasileiras.Já rabinos brasileiros de diferentes correntes apontam dificuldades para acolher o grupo, entre os quais a sobrecarga de funções e preocupações com a segurança.Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, O rabino João Medeiros é um dos precursores do movimento de retorno ao judaísmoLei do RetornoEm parte, as dificuldades enfrentadas pelos bnei anussim refletem disputas em torno de quem tem o poder de fazer conversões no judaísmo e as fronteiras entre religião e laicidade no Estado de Israel.A Lei do Retorno de Israel, de 1950, estabelece que todo judeu tem o direito de migrar para Israel e obter a cidadania israelense. O país considera como judeu quem tenha ao menos algum avô ou avó judia ou que tenha se convertido à religião.Vários bnei anussim entrevistados pela reportagem foram convertidos ao judaísmo por Chaim Amsalem, um rabino que também construiu uma carreira política em Israel.Nascido em 1959 em uma família sefardita na Argélia, Amsalem migrou para Israel com a família na infância e foi ordenado rabino em 1980.Ele foi membro do Parlamento Israelense entre 2006 e 2013 pelo partido religioso Shas e ganhou fama ao defender um processo mais simples para a conversão de judeus.Para Amsalem, essa é uma questão central para a sobrevivência de Israel e do judaísmo. “Somos 20 milhões [de judeus] no mundo hoje, mas podemos nos tornar 200 milhões”, ele diz à BBC News Brasil. “Se você é um povo grande, você é um povo mais forte.”Amsalem diz já ter convertido entre 2 mil e 3 mil bnei anussim brasileiros, que ele considera “ovelhas desgarradas que precisamos trazer de volta ao rebanho”. “Toda pessoa que pense que tem origem judaica pode entrar no judaísmo. Hoje, para mim, essa é a missão mais importante que pode existir no mundo judaico.”Crédito, Zera IsraelLegenda da foto, O rabino Chaim Amsalem (à esq.) com o presidente de Israel, Isaac Herzog Disputas na JustiçaAs posições do rabino, no entanto, atraíram críticas de outros religiosos, que viam seus critérios para conversões como permissivos demais, e ele acabou expulso do partido em 2012.Desde então, Amsalem dirige a Zera Israel, fundação dedicada a trazer de volta para o judaísmo descendentes de judeus espalhados pelo mundo.Mas o que aconteceria se todos os brasileiros com ancestralidade judaica resolvessem se converter e morar em Israel?”Seria bom”, diz Amsalem. “Os bnei anusim não são menos importantes para o povo judeu.”Em 2022, uma corte em Israel decidiu que uma mulher estrangeira convertida por Amsalem tinha direito à cidadania israelense — decisão que, em tese, abre o caminho para que todos os brasileiros convertidos por ele também solicitem a cidadania israelense.Mas a decisão não mudou a postura do governo de Israel, que continua recusando as conversões de Amsalem e privilegiando os processos chancelados pelo Rabinato-Chefe do país, controlado por rabinos ortodoxos que romperam com o argelino.Isso faz com que, para pleitear a cidadania, os convertidos por Amsalem precisem entrar na Justiça israelense ou validar a conversão em algum tribunal rabínico aceito pelo governo do país.Segundo o rabino, as resistências a seu trabalho refletem um esforço do Rabinato-Chefe em manter um controle exclusivo sobre as conversões.Procurado pela BBC News Brasil, o Rabinato-Chefe de Israel não respondeu as críticas de Amsalem nem sua recusa em aceitar as conversões do rabino.Amsalem não é o único religioso em Israel a questionar o Rabinato-Chefe, cujo poder vem sendo limitado por decisões da Justiça do país.Em 2021, a Suprema Corte de Israel considerou que conversões feitas por rabinos das correntes reformista e conservadora, ambas desvinculadas do Rabinato-Chefe, também eram válidas para a obtenção da cidadania.Conversões proibidasCrédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Redário que abriga membros da sinagoga de Tibau (RN) durante o dia de descanso.A conversão de milhares de bnei anussim brasileiros ao judaísmo é um tema controverso entre diferentes congregações judaicas no Brasil.Um dos representantes no Brasil do Chabad, um dos maiores movimentos no judaísmo ortodoxo no mundo, o rabino Shamai Ende diz à BBC News Brasil que, há várias décadas, conversões estão proibidas no país — e que, portanto, ele considera inválidos os procedimentos do rabino Amsalem.Segundo Ende, as proibições aconteceram porque muitas pessoas se converteram ao judaísmo no país com “segundas intenções”.”Pessoas que querem fazer a conversão para serem auxiliadas pela comunidade… isso são segundas intenções”, exemplifica Ende.Há várias organizações filantrópicas judaicas que oferecem assistência a judeus em situação vulnerável.Ende afirma ainda que os bnei anussim são livres para viver como judeus, mas que “devem fazer tudo na comunidade deles — escolas, sinagogas etc. — para não ficarem dependendo das [nossas] comunidades ortodoxas”.”O povo judeu não é proselitista, não fazemos questão de trazer outros para dentro do judaísmo”, diz o rabino.Questionado sobre o caso do líder bnei anussim que diz ter sido barrado em uma sinagoga em São Paulo, Ende afirmou que as congregações não podem permitir a entrada de desconhecidos.”Estamos vivendo uma época de antissemitismo muito grande e muitos que tentam entrar na sinagoga como judeus, na verdade, são terroristas.”Crédito, Felix Lima/BBCLegenda da foto, Rezas nas sinagogas de Tibau são em hebraico ou ladino, antiga língua de judeus sefarditas da Península IbéricaEm outras congregações judaicas não ortodoxas, o fenômeno bnei anussim é visto mais favoravelmente, e várias delas realizam conversões de membros do grupo, ainda que admitam não conseguir atender à demanda.Rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), que segue o judaísmo liberal e se apresenta como a maior comunidade judaica do país, Ruben Sternschein diz considerar positivo que alguém queira se tornar judeu, “desde que isso seja autêntico e traga um bem para si e os que estão à volta”.Segundo Sternschein , a CIP tem acolhido vários bnei anussim, e ele próprio esteve em Natal em 2022 para iniciar o processo de conversão de algumas famílias na cidade.O rabino afirma, porém, que o fenômeno apresenta um grande desafio para sua congregação, “porque cada caso [de conversão] é um caso e porque a comunidade tem que cuidar de muitas outras coisas”.Sternschein diz que, entre outras funções, os rabinos da CIP acompanham um grupo de 500 jovens e dão suporte espiritual a idosos hospitalizados.Questionado sobre possíveis casos de preconceito contra os bnei anussim em comunidades judaicas tradicionais, ele disse que as queixas podem ter fundamento.”Os judeus somos um dos exemplos dos coletivos minoritários mais discriminados na história da humanidade, mas nem sempre a pessoa que mais sofreu alguma coisa é a que tem mais força para evitar que isso aconteça”, diz Sternschein.Ele afirma, porém, que essa postura não é exclusiva dos judeus: “Vivemos numa sociedade em que a desumanização é instantânea, e todos precisamos trabalhar nisso constantemente, não só os judeus”.Profecias do fim dos temposApesar das resistências em parte da comunidade judaica, o movimento de retorno ao judaísmo já viu um de seus precursores chegar ao posto de rabino.João Fernandes Dias de Medeiros, de 91 anos, oficializou sua adesão à fé judaica nos anos 1960, após passagens pelas Igrejas Metodista e Presbiteriana.Em 2006, ele foi aclamado rabino da sinagoga Brás Palatnik, fundada em Natal em 1925 por judeus do leste europeu. Ainda assim, Medeiros relata que sua autoridade já foi contestada dentro da própria comunidade. Certa vez, um integrante insistia em chamá-lo de “amigo” em vez de “rabino”. Ao questionar a postura, Medeiros ouviu do colega que, para ele, Medeiros “não era nem judeu, nem rabino”. Diante da afirmação, diz ter reagido “com grosseria”.”Ninguém depende, para o retorno ao judaísmo, de uma corte rabínica ou de receber autorização”, defende Medeiros. Para ele, congregações que se recusam a acolher os bnei anussim “estão perdendo o bonde da história”.Medeiros associa o movimento de retorno ao cumprimento de profecias judaicas sobre o fim dos tempos. “O Eterno prometeu, como castigo aos judeus que transgrediram, que iria dispersá-los por todos os países, mas, no final dos tempos, iria trazê-los de volta”, diz. “O retorno está acontecendo.”



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