Por que cresce número de pessoas sem-teto nos EUA, país mais rico do mundo



Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, Homem dormindo em um banco na capital americana, Washington DCArticle InformationAuthor, Leire VentasRole, Correspondente da BBC News Mundo em Los Angeles (EUA)X, @leire_ventasHá 4 minutos”Os sem-teto precisam sair imediatamente” de Washington DC, segundo escreveu no domingo (10/8) o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na sua plataforma TruthSocial.”Daremos a eles um lugar para ficar, mas longe da capital”, prosseguiu Trump. “Os criminosos não precisam se mudar. Vamos colocá-los na cadeia, que é onde deveriam estar.”No dia seguinte à publicação, o presidente convocou a Guarda Nacional para Washington DC, colocando a polícia da capital americana sob seu comando direto.O plano também inclui o reforço das patrulhas noturnas com agentes do FBI. O objetivo, segundo Trump, é “liberar” uma cidade “sem lei” dos sem-teto e dos delinquentes, para que ela volte a ser “mais bela e segura do que nunca”.Lideradas pela prefeita democrata do Distrito de Columbia, Muriel Bowser, as autoridades locais qualificaram a iniciativa de “desconcertante e improcedente”, indicando que a criminalidade na capital americana está diminuindo.De fato, as estatísticas publicadas pela Polícia Metropolitana de Washington DC (MPDC, na sigla em inglês) indicam que os delitos violentos caíram em 2024 ao seu nível mais baixo, depois de registrar um pico em 2023. E a tendência se mantém, até o momento, em 2025.As organizações do setor afirmam que esta medida traça uma imagem “simplista e distorcida” do fenômeno.Crédito, Los Angeles Times via Getty ImagesLegenda da foto, O número de famílias sem-teto com filhos nos Estados Unidos aumentou em 40% no ano passadoEm 2024, o número de pessoas em situação de rua nos Estados Unidos disparou, atingindo 770 mil indivíduos — o número mais alto desde o início dos registros, segundo o relatório federal mais recente sobre o assunto.Em outras palavras, no final do ano passado, 23 a cada 10 mil habitantes do país não tinham um teto sobre suas cabeças.Mas quais são os principais motivos desta situação complexa que, em vez de ser solucionada, continua crescendo?Por que não se conseguiu resolver o problema em um país considerado o mais rico do mundo, com um Produto Interno Bruto (PIB) de cerca de US$ 30 trilhões (cerca de R$ 162 trilhões), segundo o Banco Mundial?E o que podemos esperar do enfoque apresentado agora pelo governo Donald Trump?Crédito, Bloomberg via Getty ImagesLegenda da foto, Sem-teto ‘precisam sair imediatamente’ de Washington, disse TrumpNúmeros recordeDesde 2007, o Departamento de Moradia e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos (HUD, na sigla em inglês), uma agência federal subordinada diretamente ao presidente americano, realiza a contagem anual das pessoas que vivem em situação de rua no país.A pesquisa é feita durante uma noite por ano e a contagem realizada em janeiro de 2024 encontrou 771.480 pessoas sem acesso a moradia.Este número representa um aumento de 18% em relação a 2023, quando também houve um crescimento de 12% sobre o ano anterior. O resultado consta do último relatório anual da agência, publicado em dezembro.Ele também mostra que o aumento ocorreu em todos os grupos populacionais e de forma especialmente pronunciada (cerca de 40%) entre as famílias com filhos. Quase 150 mil menores de idade foram considerados sem-teto na noite da contagem.Um dos poucos grupos de sem-teto a ter redução foi o dos veteranos das Forças Armadas.O número de ex-militares sem-teto caiu em 8%, chegando a 32.882 em 2024. A redução foi ainda maior, de 11% (13.851), entre os que não permaneciam em albergues ou não tinham acesso a outro tipo de acolhimento temporário.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, O governo dos EUA contabilizou no ano passado 771.480 pessoas sem-tetoO relatório indicou, de forma geral, dois dos principais fatores que impulsionaram os recordes dos números: a crise nacional da moradia e o fim da assistência federal referente à pandemia (como a moratória dos aluguéis e o Programa de Assistência para Aluguel de Emergência). Mas a pressão demográfica imposta pela chegada de dezenas de milhares de imigrantes em busca de asilo — e, portanto, de moradia — foi outro fator importante.Segundo o HUD, a quantidade de famílias sem-teto mais do que dobrou nas 13 comunidades que mais receberam imigrantes. E, nas 373 comunidades restantes, a diferença foi de 8%.A reportagem constatou que dezenas de famílias procedentes da Venezuela, Equador e de outros países latino-americanos haviam se somado à população habitual de pessoas sem-teto da região.A venezuelana Doris, de 40 anos de idade, mostra uma tenda de campanha em plena rua, que ela divide com sua filha e sua neta. Ela contou à BBC que morava ali havia 10 dias.”Pensávamos que ficaríamos primeiramente em um albergue e depois, trabalhando um pouco aqui e ali, poderíamos nos assentar e pagar um aluguel”, segundo ela. “Mas, infelizmente, não é fácil quando você é imigrante e não tem visto de trabalho.”Hoje, este fluxo está praticamente paralisado, em consequência das políticas anti-imigração do governo Trump e do reforço da fronteira com o México. E o panorama nas ruas também foi afetado pelas deportações em massa.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, A quantidade de famílias sem-teto aumentou em mais de 100% nas comunidades que receberam mais imigrantes em 2024, segundo as estatísticasRazões estruturaisMas, além dos recordes, as organizações do setor destacam que a crise dos sem-teto é um problema complexo, estrutural, multifatorial e de longa data.A Aliança Nacional para o Fim dos Sem-Teto indica motivos que variam da escassez de moradia acessível até a diferença cada vez maior entre os salários e o custo dos aluguéis, sem falar na limitação de acesso à assistência médica e outros serviços sociais, no racismo e na marginalização sistêmica.”As políticas discriminatórias históricas e atuais continuam definindo quem tem acesso aos recursos e às oportunidades”, destaca a entidade.Desde 1987, a organização fornece dados e pesquisas para o desenvolvimento de políticas públicas em relação à moradia, além de oferecer assistência técnica aos seus associados de campo.”Para entender [a problemática do acesso à moradia], é preciso reconhecer como agem esses sistemas interconectados de discriminação para negar às comunidades os recursos e as oportunidades necessárias para a estabilidade habitacional”, conclui a entidade.Dados compilados pela aliança indicam que o percentual de famílias dos Estados Unidos que destinam mais da metade dos seus ganhos ao pagamento do aluguel disparou na última década, aumentando em mais de 12,5% entre 2015 e 2022.As Nações Unidas consideram que uma residência é acessível quando a família dedica menos de 30% da sua renda a gastos relacionados à habitação.Crédito, JIM LO SCALZO/EPA/ShutterstockLegenda da foto, Em 2024, foram contabilizadas 770 mil pessoas em situação de rua nos Estados Unidos — o número mais alto desde o início dos registrosTomando este percentual como referência, um relatório recente da Coalizão Nacional pela Moradia de Baixa Renda (NLIHC, na sigla em inglês), outra organização não governamental especializada no assunto, concluiu que o trabalhador médio que ganha salário mínimo nos Estados Unidos precisa trabalhar cerca de 104 horas semanais (o equivalente a 2,4 empregos em tempo integral) para poder alugar um apartamento de um dormitório a preço “justo” de mercado.Fundada em 1974 e com sede em Washington, a NLIHC também estima um déficit de 7,1 milhões de moradias acessíveis e disponíveis para aluguel a inquilinos considerados de renda extremamente baixa.Este número representa apenas 35 moradias para cada 100 famílias com este perfil, que gastam com habitação 30% ou menos da renda média da região onde vivem.”A crise atual está enraizada na enorme escassez de moradia para pessoas que se encontram há muito tempo em situações extremas”, afirmou à BBC News Mundo a diretora da Iniciativa Benioff sobre Habitação e Falta de Moradia da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), nos Estados Unidos, Margot Kushel.Kushel é professora de Medicina e chefe da Divisão de Igualdade em Saúde e Sociedade da mesma universidade. Ela também indica outros fatores que podem contribuir para a perda de moradia.”Quando os cidadãos não conseguem custear ou ter acesso a serviços sociais e sanitários, isso repercute não só na sua saúde, mas também na sua situação financeira”, segundo a professora.Crédito, Getty ImagesLegenda da foto, As organizações especializadas no tema da moradia indicam que o problema das pessoas sem-teto é complexo e multifatorial.Segundo uma pesquisa de 2024 realizada pela KFF, uma organização não partidária dedicada às políticas de saúde, três em cada quatro adultos estão preocupados por não conseguirem pagar despesas médicas inesperadas (74%) ou com o custo dos serviços de saúde (73%) para eles e suas famílias.O estudo também concluiu que 61% dos adultos que não contam com seguro-saúde particular postergaram sua contratação devido aos custos. E 21% dos pesquisados que possuem seguro afirmaram não receber a atenção médica necessária, pois sua apólice não tem cobertura completa e eles não podem arcar com os gastos.Por outro lado, a equipe de pesquisa da UCSF, chefiada por Kushel, vem estudando pessoas idosas sem-teto há vários anos e concluiu que quase a metade delas ficou sem lar quando tinha mais de 50 anos.Por tudo isso, a especialista destaca que a ordem executiva do presidente Trump e suas declarações sobre o assunto traçam um retrato “excessivamente simplista e distorcido” desta questão.’Retrato simplista’A decisão presidencial publicada no último dia 24 de julho afirma que “a vadiagem endêmica, o comportamento desordenado, os repentinos enfrentamentos e os ataques violentos” tornaram as cidades dos Estados Unidos “mais inseguras”.Em relação ao aumento dos números das pessoas sem-teto, o documento destaca que “a esmagadora maioria desses indivíduos são dependentes de drogas, possuem problemas de saúde mental ou ambos (…)”.A medida conclui que os governos federais anteriores, bem como os estaduais, “gastaram dezenas de bilhões de dólares em programas que fracassaram, abordando a falta de moradia, mas não suas causas primárias, deixando outros cidadãos vulneráveis a ameaças à segurança pública”.Com base nisso, o presidente solicita à procuradora-geral, Pam Bondi, a tomada de ações legais para revogar os precedentes judiciais e os chamados “decretos de consentimento”, que limitam a capacidade dos governos locais e estaduais de trasladar as pessoas que moram nas ruas e acampamentos para centros de tratamento.A medida também instrui a procuradora a oferecer assistência aos governos estaduais e municipais, permitindo a internação civil e o tratamento adequado de pessoas com doenças mentais que representem perigo para os demais ou que morem na rua e não possam cuidar de si mesmas.Crédito, The Washington Post via Getty ImagesLegenda da foto, Trump, anunciou uma ordem executiva intitulada ‘Acabar com a delinquência e a desordem nas ruas americanas'”O traslado das pessoas sem-teto para instituições de longa permanência, para que recebam tratamento humano com o uso adequado da internação civil, restabelecerá a ordem pública”, segundo a ordem de Trump, intitulada “Acabar com a delinquência e a desordem nas ruas americanas”.A decisão presidencial também exige que os Departamentos da Justiça, Saúde e Serviços Humanos, Moradia e Transporte priorizem as subvenções federais para os Estados e cidades que “fizerem cumprir as proibições sobre o consumo aberto de drogas ilícitas, acampamento em zonas urbanas e ocupações de imóveis”.A ordem executiva também ordena uma ampla coleta federal de dados sobre pessoas sem-teto com incapacidade mental.Esta medida traz sérias preocupações com a vigilância, a privacidade e sobre “como esses dados poderão ser empregados para justificar aumento da criminalização”, alertou em comunicado a União Americana das Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês).”Criminalizar as pessoas por não terem um teto ou por sofrerem problemas de saúde mental ou de abuso de substâncias não irá criar uma comunidade mais segura, mas sim fará com que todos tenham menos segurança”, lamenta Kushel, “e não contribui em nada para uma possível solução da crise das pessoas sem-teto.”



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