Rio concentra 43% das apreensأµes de fuzis, armas de guerra que desconfiguraram o estado em cinco dأ©cadas



Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio: criminosos com fuzis atravessados no peito vigiam a entrada da comunidade. Numa rua de Botafogo, imagens de cأ¢meras mostram o momento em que assaltantes, numa madrugada de domingo, usam o mesmo tipo de arma para tentar roubar o carro de um morador. Bandidos sأ£o flagrados testando essas “mأ،quinas mortأ­ferasâ€‌ num verdadeiro centro de treinamento do trأ،fico do Complexo da Marأ©, onde o arsenal tambأ©m أ© exibido em bailes funk. Os estampidos que rompem o silأھncio da Serra da Grota Funda sأ£o de tiros que assassinaram um agente da elite das forأ§as de seguranأ§a. Para enfrentar o poder bأ©lico do crime, em quase qualquer rua أ© possأ­vel cruzar com carros da polأ­cia com o bico de fuzil para fora da janela — e poucos se abalam com a cena, jأ، banalizada. Contragolpe sangrento: Apأ³s se alastrar por 21 estados, Comando Vermelho trava guerra expansionista no Rio e jأ، tomou 19 comunidades da milأ­ciaVinأ­cius Drumond: Bicheiro que escapou de atentado faz parte da ‘Santأ­ssima Trindade’, nova cأ؛pula do bicho; entenda Faz quase cinco dأ©cadas que essas armas de uso militar e sأ­mbolo de guerra se tornaram parte da paisagem do Rio. Enquanto em outros paأ­ses e alguns estados brasileiros o fuzil أ© raramente empregado, no territأ³rio fluminense mata, mutila e destrأ³i famأ­lias. Circula livremente em أ،reas sob domأ­nio do crime e أ© utilizado atأ© para assaltar pedestres. Virou a garantia para controlar comunidades inteiras, impor o terror e subjugar pessoas, como mostra a primeira reportagem da sأ©rie “O gatilho da violأھnciaâ€‌. Colأ´mbia, Mأ©xico e Rio Apesar desse cotidiano, o uso do armamento por organizaأ§أµes criminosas em ambiente urbano أ© considerado uma excepcionalidade. — No mundo, o emprego dessa arma ocorre em aأ§أµes muito especأ­ficas, como atentados terroristas ou no novo cangaأ§o (ataques a agأھncias bancأ،rias no interior do Brasil). Nأ£o أ© uma arma normalmente empregada para domأ­nio territorial. Isso, que saibamos, sأ³ ocorre no Mأ©xico, na Colأ´mbia e no Rio — afirma o delegado Vinicius Domingos, da Coordenadoria de Fiscalizaأ§أ£o de Armas e Explosivos (CFAE) da Polأ­cia Civil fluminense. — Aqui, a possibilidade de controle de territأ³rio أ© sustentada pelo fuzil, sem o qual as quadrilhas nأ£o tأھm como exercer sua forأ§a e explorar uma gama de crimes. Sem essa arma, nأ£o haveria os confrontos da forma como conhecemos. Nأ£o existiriam tiroteios entre bandidos e policiais que duram 50 minutos, impactam a vida da populaأ§أ£o e resultam em balas perdidas. 100 anos do GLOBO: Flagrantes de fuzis e traficantes no Rio 1 de 36 Traficante do Morro Chapأ©u Mangueira foge durante operaأ§أ£o do Bope na comunidade. (Foto tirada em 05/06/2018, no Rio de Janeiro) Marcelo Carnaval/ Agأھncia O Globo 2 de 36 Operaأ§أ£o da DHBF na Favela Vila Ideal em Duque de Caxias apreende drogas, um fuzil e uma metralhadora ponto 30. (Foto tirada em 20/08/2010 , no Rio de Janeiro ) — Foto: Gustavo Azevedo / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 3 de 36 Crianأ§as brincam enquanto traficantes, um deles com fuzil lanأ§a-granada, montam guarda no alto do Morro Dona Marta, em Botafogo (Foto tirada em, 09/08/1994 no Rio de Janeiro) — Foto: Chiquito Chaves / Agأھncia O Globo 4 de 36 Mulheres envolvidas com trأ،fico. MV Bill e Celso Athaأ­de lanأ§arأ£o livro “Falcأµes, mulheres do trأ،fico” nos presأ­dios. (Foto tirada em 26/10/2007, no Rio de Janeiro) — Foto: Marcelo Carnaval/ Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 5 de 36 Policiais da 27آ° DP (Vicente de Carvalho) apreendem fuzil, muniأ§أ£o, drogas e artigos eletrأ´nicos na favela Para-Pedro em Irajأ،. (Foto tirada 10/04/2006, no Rio de Janeiro ) — Foto: Marcelo Franco / Agأھncia O Globo 6 de 36 Traficantes armados no Morro da Mineira vigiam a movimentaأ§أ£o na cidade (Foto tirada em 03/10/2007, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 7 de 36 Afronta, traficante com fuzil perto da UPP de Cidade de Deus. (Foto tirada em 02/02/2017, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia o Globo 8 de 36 Traficantes armados no morro da Mineira em plena luz do dia, por volta das 16h40 do dia 13/10/2002, no Rio de Janeiro) — Foto: Acervo O Globo Pular X de 36 Publicidade 9 de 36 Traficante do Morro Chapأ©u Mangueira foge durante operaأ§أ£o do Bope na comunidade. (Foto tirada em 05/06/2018, no Rio de Janeiro) — Foto: Marcelo Carnaval/ Agأھncia O Globo 10 de 36 A candidata do PSOL senadora Heloأ­sa Helena faz campanha no Complexo da Marأ©. Durante a carreata no Conjunto Esperanأ§a, a candidata passou por traficantes armados. (Foto tirada em 27/09/2006, no Rio de Janeiro) — Foto: Mأ،rcia Foletto/ Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 11 de 36 A Polأ­cia Militar realiza incursأ£o na Vila Cruzeiro, prendendo traficantes e armamento, entre elas uma ponto 30. (Foto tirada em 15.04.2008, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia o Globo 12 de 36 Pontos usados por traficantes no Morro da Coroa (Foto tirada em 24/06/2009, no Rio de Janeiro) — Foto: Pablo Jacob/ Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 13 de 36 Imagem feita no Morro Jorge Turco mostra traficantes armados de fuzil no Morro Jorge Turco, em Coelho Neto — Foto: Acervo O Globo 14 de 36 Bandido ostenta dois fuzis na Pedreira, em Costa Barros — Foto: Acervo O Globo Pular X de 36 Publicidade 15 de 36 Operaأ§أ£o policial com a Forأ§a Nacional no Complexo do Alemأ£o, entrada da favela da Fazendinha. Traficantes armados na Rua Antأ´nio Austragأ©silo (Foto tirada em 14/06/2007, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia O Globo 16 de 36 Operaأ§أ£o da Core no Morro do Alemأ£o. Policiais apreendem um fuzil, muniأ§أ£o fardas do Exأ©rcito e rأ،dios comunicadores, alأ©m de matarem o traficante Tigrأ£o em troca de tiro. (Foto tirada em 16.09.2004, no Rio de Janeiro) — Foto: Luis Alvarenga / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 17 de 36 Afronta, traficante com fuzil perto da UPP de Cidade de Deus. (Foto tirada em 02/02/2017, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia o Globo 18 de 36 Policiais do RPMont apreendem fuzil AR15 apأ³s troca de tiros com bandidos da Favela do Barbante. (Foto tirada em 14/02/2005, no Rio de Janeiro) — Foto: Marcelo Franco / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 19 de 36 O traficante Mata Rindo morre em confronto com PMs. (Foto tirada em 13/04/2008, no Rio de Janeiro) — Foto: Guilherme Pinto / Agأھncia O Globo 20 de 36 Policiais da 21آھ DP (Bonsucesso) apreenderam uma metralhadora antiaأ©rea, muniأ§أ£o, uma farda do Bope, um fuzil e prende o traficante Tavito Diniz de Queiroz na favela do Ararأ،. (Foto tirada em 18/09/2009, no Rio de Janeiro) — Foto: Pablo Jacob / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 21 de 36 Operaأ§أ£o da Core no Morro do Alemأ£o. Policiais apreendem um fuzil,muniأ§أ£o fardas do exأ©rcito e rأ،dios comunicadores alأ©m de matarem o traficante Tigrأ£o em troca de tiro. (Foto tirada em 16.09.2004, no Rio de Janeiro) — Foto: Luis Alvarenga / Agأھncia O Globo 22 de 36 Pontos usados por traficantes no morro da Coroa (Foto tirada em 24/06/2009, no Rio de Janeiro) — Foto: Pablo Jacob/ Agencia O Globo Pular X de 36 Publicidade 23 de 36 Policiais do RPmont apreendem fuzil AR15 apأ³s troca de tiros com bandidos da Favela do Barbante. (Foto tirada em 14.02.2005, no Rio de Janeiro) — Foto: Marcelo Franco / Agأھncia O Globo 24 de 36 Operaأ§أ£o policial com a Forأ§a Nacional no Complexo do Alemأ£o, entrada da favela da Fazendinha. Traficantes armados na Rua Antأ´nio Austragأ©silo (Foto tirada em 14/06/2007, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 25 de 36 Operaأ§أ£o da Core no Morro do Alemأ£o. Policiais apreendem um fuzil,muniأ§أ£o fardas do exأ©rcito e rأ،dios comunicadores alأ©m de matarem o traficante Tigrأ£o em troca de tiro. (Foto tirada em 16.09.2004, no Rio de Janeiro) — Foto: Luis Alvarenga / Agأھncia O Globo 26 de 36 Mangueira em Guerra. Tiroteio entre polأ­cia militar e traficante deixa Mأ£e e filha mortas na comunidade. (Foto tirada em 30/06/2017, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 27 de 36 Traficante armado durante ocupaأ§أ£o do Exأ©rcito na Favela da Rocinha (Foto tirada em 14/03/2006, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia o Globo 28 de 36 Trأ،fico no Morro da Mineira (Foto de 30/09/2002, no Rio de Janeiro) — Foto: Andrأ© Correa / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 29 de 36 Policiais do RPMont apreendem fuzil AR15 apأ³s troca de tiros com bandidos da Favela do Barbante. (Foto de 14/02/2005, no Rio de Janeiro) — Foto: Marcelo Franco / Agأھncia O Globo 30 de 36 Policiais do RPMont apreendem fuzil AR15 apأ³s troca de tiros com bandidos da Favela do Barbante. (Foto de 14/02/2005, no Rio de Janeiro) — Foto: Marcelo Franco / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 31 de 36 Policiais da 27آ° DP, Vicente de Carvalho apreendem fuzil, muniأ§أ£o, drogas e artigos eletrأ´nicos na Favela Para-Pedro, em Irajأ،. (Foto tirada 10.04.2006, no Rio de Janeiro ) — Foto: Marcelo Franco / Agأھncia O Globo 32 de 36 Operaأ§أ£o da Core no Morro do Alemأ£o. Policiais apreendem um fuzil,muniأ§أ£o fardas do exأ©rcito e rأ،dios comunicadores alأ©m de matarem o traficante Tigrأ£o em troca de tiro. (Foto tirada em 16.09.2004, no Rio de Janeiro) — Foto: Luis Alvarenga / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 33 de 36 Operaأ§أ£o policial com a Forأ§a Nacional no Complexo do Alemأ£o , entrada da favela da Fazendinha – Traficantes armados na Rua Antأ´nio Austragأ©silo (Foto tirada em 14/06/2007, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia O Globo 34 de 36 Trأ،fico no Morro da Mineira (Foto tirada em 30.09.2002, no Rio de Janeiro) — Foto: Andre Correa / Agأھncia O Globo Pular X de 36 Publicidade 35 de 36 Mangueira em Guerra: tiroteio entre polأ­cia militar e traficante deixa Mأ£e e filha mortas na comunidade. (Foto tirada em 30/06/2017, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia O Globo 36 de 36 Ocupaأ§أ£o do Exأ©rcito na Rocinha: traficante armado (Foto tirada em 14/03/2006, no Rio de Janeiro) — Foto: Domingos Peixoto / Agأھncia o Globo Pular X de 36 Publicidade Registros feitos por fotأ³grafos da Agأھncia O Globo ao longo da histأ³ria Sociedade: Narcocultura, violأھncia arraigada no cotidiano e o vأ،cuo do Estado nas favelas: debates que voltam أ  cena apأ³s o caso do MC Poze O nأ؛mero de apreensأµes dأ، uma dimensأ£o de um Rio sempre no alvo. O estado concentra 37,39% do total de fuzis retirados das mأ£os de bandidos no Brasil em 2024. Foram 732, contra 570 de Sأ£o Paulo (segundo colocado no ranking) no mesmo perأ­odo. Quando se analisa o perأ­odo entre 2015 e 2024, disponأ­vel nos banco de dados do Ministأ©rio da Justiأ§a, os dados sأ£o ainda mais alarmantes. Em dez anos, foram 4.714 fuzis apreendidos, uma fatia correspondente a 43,07% do total nacional. Isso significa que, a cada dez fuzis encontrados pelas polأ­cias em todo paأ­s, quatro foram no Rio. A sأ©rie histأ³rica do Instituto de Seguranأ§a Pأ؛blica (ISP) أ© mais longa. E revela que, de 2007 atأ© o fim de 2024, jأ، foram apreendidos 6.619 fuzis no estado. As armas poderiam equipar de sete a nove tropas do Grupo Tأ،tico de Batalhأ£o (BTG) do Exأ©rcito russo, que atua no conflito na Ucrأ¢nia. O delegado Vinicius Domingos destaca que, alأ©m das armas, os criminosos tأھm se apropriado de tأ،ticas de combate para impedir a entrada da polأ­cia nas comunidades, utilizando barricadas, blindados, seteiras e disparando muniأ§أ£o indiscriminadamente: — Vivemos conflitos urbanos inimaginأ،veis. Se acontece em qualquer paأ­s, parariam tudo. Mas aqui, convivemos com algo anormal e tratamos como se fosse rotina. Delegado mostra alguns dos modelos apreendidos com os bandidos no Rio — Foto: Domingos Peixoto Dos roubos a agأھncias bancأ،rias ao trأ،fico de cocaأ­na Essa أ© uma histأ³ria que comeأ§a a ser construأ­da no fim da dأ©cada de 1970 e inأ­cio dos anos 1980, quando houve os primeiros relatos do uso de fuzis por criminosos. Inicialmente, eram casos isolados e tinham como origem o desvio ou o roubo de armas das Forأ§as Armadas. Em 26 de setembro de 1980, um grupo assaltou um banco em Bonsucesso com um Fuzil Automأ،tico Leve (FAL). A surpresa de um inspetor da Polأ­cia Civil revelava como aquilo era uma novidade. “Temos informaأ§أµes de que eles usavam um fuzil automأ،tico FAL, arma privativa das Forأ§as Armadas. Isso mostra que os assaltantes nأ£o sأ£o criminosos comunsâ€‌, pontuou, numa أ©poca em que a polأ­cia sequer cogitava usar esse armamento. Arsenal importado: menos de 6% dos 638 fuzis apreendidos no Rio em 2024 foram fabricados no Brasil O primeiro fuzil Colt AR-15 — de fabricaأ§أ£o americana, muito usado na Guerra do Vietnأ£ — apreendido no Rio motivou o entأ£o governador Moreira Franco, em 24 de novembro de 1989, a convocar toda a imprensa ao Palأ،cio Guanabara. “أ‰ absolutamente intolerأ،vel que essas armas entrem no Brasil contrabandeadas tranquilamenteâ€‌, disse sobre o AR-15 encontrado na Favela de Acari. O coronel Emir Laranjeiras era comandante do 9آ؛ BPM na أ©poca, responsأ،vel pela operaأ§أ£o que tirou a arma das ruas. — Quando levamos para o quartel, confesso que eu nem sabia o que era aquilo. Falei o quanto era absurdo continuar a entrar esse tipo de armamento nas favelas pelas mأ£os das facأ§أµes. O alerta era que, como nأ³s nأ£o tأ­nhamos acesso a esse tipo de arma, se a situaأ§أ£o continuasse daquele jeito, muitos policiais morreriam — relembra o oficial. Moreira Franco observa fuzil Colt AR-15 apreendido com traficantes, em 1989 — Foto: Manoel Soares/Agأھncia O GLOBO A previsأ£o viraria realidade. Os anos 1980 coincidiam com a ascensأ£o do Comando Vermelho. Um dos episأ³dios que chocaram a opiniأ£o pأ؛blica e colocaram o fuzil no centro do debate aconteceu na Rocinha, em 1988. Ednaldo de Souza, o Naldo, chefe do trأ،fico na comunidade, foi filmado com um fuzil Heckler & Koch, roubado da Aeronأ،utica, disparando rajadas para o alto. Exibiأ§أ£o de forأ§a. O traficante Ednaldo de Souza, o Naldo da Rocinha, faz disparos para o alto com um fuzil em 1988: atأ© entأ£o uma raridade — Foto: Reproduأ§أ£o Roberto Uchأ´a, conselheiro do Fأ³rum Brasileiro de Seguranأ§a Pأ؛blica, afirma que, a partir dessa أ©poca, teve inأ­cio uma corrida armamentista — tanto no crime quanto nas forأ§as de seguranأ§a. Nas dأ©cadas de 1980 e 1990, os equipamentos chegavam para os bandidos pela mesma rota do trأ،fico de cocaأ­na. — أ‰ o trأ،fico dessa droga que enriquece as facأ§أµes e estimula a disputa entre elas, iniciando uma corrida para ver quem tinha mais armas. Em seguida, a polأ­cia tambأ©m entra nessa disputa — explica Uchأ´a. A Polأ­cia Militar recebeu os primeiros fuzis em 1993, por meio de emprأ©stimo do Exأ©rcito. O modelo cedido aos PMs era o FAL 7,62. Alguns anos depois, a corporaأ§أ£o fez sua primeira aquisiأ§أ£o prأ³pria do armamento. Em razأ£o do alto poder de fogo, a utilizaأ§أ£o de um fuzil exige treinamento e controle. Nأ£o أ  toa, a prأ³pria polأ­cia evita usar os modelos de regime automأ،tico, que possibilita atirar entre 700 e 900 projأ©teis por minuto. Porأ©m, sأ£o justamente esses modelos os mais apreendidos com criminosos, como pondera o delegado da CFAE: — O modo automأ،tico أ© uma grande capacidade ofensiva nas mأ£os dos bandidos, uma vantagem desproporcional. Como o criminoso nأ£o se importa com quem estأ، ao redor, ele aperta o gatilho e dispara dezenas de projأ©teis em somente um segundo e meio. Fuzil como parte da paisagem do Rio: polأ­cia faz patrulhamento com bicos das armas para fora da janela — Foto: Mأ،rcia Foletto Sأ£o 18,2% de toda a أ،rea urbana habitada da Regiأ£o Metropolitana fluminense sob domأ­nio de algum grupo armado, segundo o mais recente Mapa dos Grupos Armados, realizado no ano passado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni-UFF) e do Instituto Fogo Cruzado. A arma que chegou أ s facأ§أµes no rastro das drogas ultrapassou os limites das comunidades dominadas e espalha tambأ©m espalha hoje o terror nas ruas. Em plena Avenida Brasil, o professor geografia Daniel, de 58 anos — que prefere nأ£o revelar seu sobrenome —, teve um fuzil apontado para sua cabeأ§a num assalto. Execuأ§أµes, desaparecimentos, terreiros de Umbanda proibidos: Complexo de Israel vive sob ditadura do traficante Peixأ£o, que diz ser evangأ©lico — Eu tinha plena consciأھncia de que, se aquele homem puxasse o gatilho, minha cabeأ§a seria estraأ§alhada — relembra a vأ­tima, que teve carro, carteira e celular roubados. — Depois que registrei o crime, um policial me explicou que os bandidos preferem veأ­culos altos, por facilitarem o transporte do fuzil. Ao comprar outro carro, escolhi um modelo mais baixo. Aqui, a gente nأ£o escolhe o carro que quer, e sim o que dأ، mais chance de voltar para casa com vida. Pistolas croatas e fuzis turcos: como agia chefe do Alemأ£o apontado pela PF como um dos principais compradores de armas do paأ­s Baleados mudaram as emergأھncias da rede de saأ؛de A chegada de fuzis أ s mأ£os de criminosos do Rio logo impactou as emergأھncias da rede pأ؛blica de saأ؛de. Os primeiros feridos por armas de longo alcance surpreenderam o cirurgiأ£o de tأ³rax Rodrigo Gavina, de 52 anos, que trabalhava no Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro, no inأ­cio da dأ©cada de 1990. O mأ©dico conta precisou recorrer a estudos de balأ­stica e de traumas de guerra para aprender a tratar os pacientes. Segundo ele, que se tornou um dos maiores especialista no atendimento a baleados, era como se fosse uma “doenأ§a novaâ€‌. — O centro de gravidade de um projأ©til de fuzil أ© diferente do de outras armas. Devido أ  sua velocidade e instabilidade, ele gira dentro do corpo provocando mأ؛ltiplos efeitos de cavidade temporأ،ria. Esse movimento de expansأ£o e contraأ§أ£o suga para dentro do ferimento impurezas da pele, pأ³lvora e fragmentos do prأ³prio projأ©til, tornando a lesأ£o altamente contaminada. أ‰ esse movimento que faz com que um tiro de raspأ£o na costela lesione atأ© o coraأ§أ£o. Por isso, tanta gravidade — explica o mأ©dico, que hoje أ© vice-presidente de operaأ§أµes tأ©cnicas na Rede D’Or Sأ£o Luiz. De acordo com Gavina, a entrada de fuzis no Estado do Rio causou profundas transformaأ§أµes na saأ؛de: — Em nenhum outro lugar do mundo أ© comum presenciar esse bangue-bangue com fuzis. Isso أ© assustador. Mesmo que a vأ­tima consiga sobreviver, fica mutilada, perde a capacidade de trabalhar ou enfrenta sequelas permanentes que a impedem de retomar a rotina. Esse أ© um custo indireto, difأ­cil de mensurar, mas extremamente significativo para a sociedade. Veja vأ­deo: Dezenas de bandidos do CV do Cearأ، e do Rio, com fuzis, fogem pela mata em aأ§أ£o do Bope na Rocinha Foi o tiro de uma arma dessas que atingiu Caio Douglas Nascimento Wiechers, entأ£o com 18 anos. O jovem seguia para casa de carro com a mأ£e, Alexsandra Nascimento, que entrou por engano na Cidade Alta, no Complexo de Israel, na Zona Norte, em 2022. — Lembro que foram muitos tiros, mais de dez. Quando cheguei ao fim da rua e foi que vi meu filho baleado na cabeأ§a. Parecia um filme. Fique muito impactada porque o Caio sempre foi caseiro. Entأ£o, eu pensava: o Caio estأ، com a mأ£e, e aconteceu isso — relembra. Traumas que nأ£o se curam Contrariando as estatأ­sticas — mأ©dicos estimam que 90% das vأ­timas de fuzil morrem —, Caio sobreviveu e, pouco mais de um ano depois, passou por uma cirurgia para reconstruأ§أ£o do crأ¢nio. Hoje, utiliza uma cadeira de rodas motorizada e faz tratamento com fonoaudiأ³loga. Mas as sequelas daquele dia permanecem gravadas na vida dos dois. Sأ³ recentemente, trأھs anos apأ³s o tiro, Alexsandra conseguiu voltar ao trabalho. Ela conta que ainda sente medo de sair de casa. Mutilados: Rio, a capital dos amputados devido أ  violأھncia armada — Sأ³ quem estأ، vivendo o que eu estou vivendo, de ter parado a minha vida, a minha histأ³ria, o futuro dele, vai entender. O Caio queria entrar para o Exأ©rcito. Tudo acabou. Outras pessoas foram baleadas no mesmo lugar e nada mudou — desabafa. Tratamento longo: Alexsandra Nascimento e o filho, Caio Douglas Wiechers — Foto: Domingos Peixoto



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